Há 60 anos começava na Alemanha Federal o Escândalo Spiegel (Die Spiegel-Affäre). Porque, de certa forma esquecido no seu país natal, e sobretudo desconhecido fora dele, vale a pena aqui contá-lo e talvez não apenas pelo próprio escândalo em si, mas sobretudo porque a forma como foi resolvido que estabeleceu uma espécie de padrão de como os escândalos passaram a ser tratados numa sociedade cujos novos costumes obrigavam a ser transparentemente democrática.
O escândalo foi desencadeado com a publicação de um artigo na edição da revista Der Spiegel de 10 de Outubro de 1962 onde eram publicadas passagens da avaliação do desempenho das unidades das forças armadas alemãs (Bundeswehr) nas manobras da NATO que estavam a decorrer nesse Outono (Fallex 62). E em que era inequívoco que o seu desempenho deixara muito a desejar: o artigo, assinado pelo especialista em assuntos militares da publicação, Conrad Ahlers, intitulava-se precisamente Em Estado de Defesa Condicional (Bedingt abwehrbereit). O conteúdo do artigo levantava um problema do âmbito da defesa (muito do material de guerra usado pelos militares alemães mostrara-se obsoleto), como também de imagem das forças armadas junto da opinião pública alemã: aos olhos desta, os militares alemães, tal como acontecera em 1918, haviam tornado a escapar às responsabilidades pela sua derrota militar fragorosa de 1945. O conteúdo do artigo beliscava-lhes a reputação. Mas, sobretudo, havia precedentes de um feroz contencioso entre a revista, o seu director e fundador, Rudolf Ausgstein, e o ministro da Defesa, o bávaro e sempre controverso Franz Josef Strauß (CSU). É muito possível que tenha sido essa azia a tornar-se parcialmente responsável pela acidez da reacção governamental. Foi apresentada uma queixa por alta traição e na sequência, mobilizando alguns braços (mas não outros que foram deliberadamente mantidos afastados do assunto) do aparelho de Estado, em 26 de Outubro várias equipas policiais desencadearam uma operação em que foram detidos Rudolf Augstein conjuntamente com vários dos elementos dos quadros editorial e redactorial da Der Spiegel, para além de terem selado as suas instalações, impossibilitando a publicação de sair. Num requinte supremo, acabou por ser a polícia espanhola, a pedido dos alemães, a encarregar-se de Conrad Ahlers, já que ele se encontrava naquele momento de férias em Espanha.
A reacção social à notícia das detenções foi péssima. Franz Jozef Strauß sempre fora um enfant terrible da política alemã, mas aquilo parecia demais. As particularidades do regionalismo bávaro, o facto de haver um partido conservador específico para aquele estado alemão, a CSU, federada mas não disciplinada na CDU ou as décadas em que Strauß foi hegemónico na política bávara, tudo isso permite estabelecer, para facilitar a explicação ao leitor português, uma analogia com Alberto João Jardim e o seu PSD madeirense. Mas a uma escala completamente distinta: a Baviera tem 12,5 milhões de habitantes e representa 15% da população alemã; a Madeira tem 270 mil, o que é apenas – mérito para Alberto João que fazia barulho para parecer muito mais! – 2,5% da portuguesa. Strauß, como Jardim, também tinha tanto de exuberante quanto de cauteloso. No caso do seu contra-ataque à Der Spiegel, o ministro da Defesa assegurara-se da cobertura do chanceler Konrad Adenauer. Mas atropelara deliberadamente vários colegas de governo no processo, nomeadamente os ministros do terceiro partido da coligação, o FDP liberal, que eram até parte envolvida nele, caso do ministro da Justiça. Pelo que o gesto representava, a comunicação social alemã também alinhou num bloco contra o ministro da Defesa. O assunto acabou por chegar ao parlamento (Bundestag) onde, nem mesmo a defesa assumida de Adenauer (que ali classificou o artigo que desencadeara o escândalo de alta traição escancarada – ein Abgrund von Landesverrat), salvou Franz Josef Strauß de muitos maus momentos. Diga-se também que as sessões parlamentares foram também ocasião para uma das expressões de solidariedade política mais eufemísticas e desculpantes que se conhece: quando confrontado com o facto de Strauß ter dado instruções ao adido militar em Madrid para que se procedesse à detenção de Conrad Ahlers, o seu colega de governo e de partido, Hermann Höcherl, ministro do Interior, teve que admitir a ilegalidade embora dizendo que ele só fora um bocadinho para além da legalidade (etwas außerhalb der Legalität). Mais tarde Strauß, no seu estilo truculento, veio a comparar todas as críticas e censuras que então recebeu ao tratamento que receberia um judeu caso ousasse aparecer numa convenção do NSDAP. Mas nessa altura já ele fora absolvido pela opinião pública.
A prazo imediato, a situação política revelou-se insuportável para o próprio chanceler Adenauer. Os cinco ministros do FDP demitiram-se em solidariedade com o seu colega da Justiça. Sem o FDP o governo perdia a maioria parlamentar e a cabeça de Strauß era o preço para o retorno dos liberais. Politicamente, der Alte (o Velho), como Konrad Adenauer era respeitosamente tratado, teve que descartar-se de Strauß, se queria continuar como chanceler, mas iria abandonar o cargo dali por um ano. Em termos de opinião publicada, os acontecimentos mostraram que os tempos haviam evoluído e que se perdera alguma tolerância à discricionariedade de um Estado musculado, que caracterizara não apenas as Alemanhas do II e do III Reich, mas também a República de Weimar intercalar (1918-1933). Mas, apesar de Rudolf Augstein estar encostado ao FDP e Conrad Ahlers ao SPD (o que ajuda a explicar as repercussões políticas que o caso alcançou), tudo o que era para acontecer, seria para acontecer a um ritmo próprio, para salvaguarda das aparências: as instalações da Der Spiegel estiveram seladas durante um mês; Conrad Ahlers, por muito ligeiramente ilegal que tivesse sido a sua detenção, ainda permaneceu preso durante quase dois meses e o director e proprietário Rudolf Ausgstein só foi libertado ao fim de três meses e meio, em Fevereiro de 1963. Quanto aos aspectos legais do processo, os Tribunais Federais deliberaram, em Maio de 1965 (sobre a queixa do Ministério da Defesa) e em Agosto de 1966 (sobre a contra-queixa da Der Spiegel), de forma salomónica, eximindo de sanções uns e outros, como a maioria dos alemães parece gostar. No final desse ano (Dezembro de 1966) Franz Josef Strauß regressava ao governo e logo com a promoção à pasta das Finanças. Iria prosseguir a sua carreira política, envolta mais uma vez em controvérsia a propósito do escândalo das luvas da Lockheed (1976). Mas, acumulando vitórias eleitorais com maiorias absolutas na sua Baviera natal, a sua força política permaneceu indestrutível. Quanto ao Der Spiegel, que, no período imediato ao da eclosão do escândalo com o seu nome, subiu a sua tiragem de 500 para 700 mil exemplares semanais, é ainda hoje um dos títulos de referência do jornalismo alemão.
Afirmar "É preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma" revela sagacidade, ainda que haja uma qualquer subjacente perversidade; pretender o inverso – não mudar nada, para que as transformações possam ocorrer – só pode considerar-se imbecilidade.
ResponderEliminar