(Republicação)
Mais do que as descrições abrangentes das consequências de um episódio na sociedade, há aqueles que ganham interesse quando são contados de uma perspectiva individual. Façamo-lo com a hiperinflação que assolou a Alemanha no Outono de 1923, a partir do impacto que ela teve na vida quotidiana de um casal com um bebé em Berlim. O casal era composto por um jovem pianista e compositor de ascendência polaca e judia chamado Mischa Spoliansky (acima) e sua esposa Elsbeth e a filha de ambos. Na Quinta-Feira, 1 de Novembro de 1923, Mischa saiu do seu apartamento, situado na zona leste de Berlim (daí por 38 anos iria ficar do lado de lá do Muro), para ir buscar um cheque aos seus editores com o pagamento dos seus direitos de autor. O dinheiro estava a fazer-lhe muita falta...
Levava um enorme rolo de notas no bolso, correspondendo a um valor nominal de 28 milhões de marcos. Quando quis comprar o seu jornal, o liberal Berliner Tageblatt, apercebeu-se que não tinha dinheiro que chegasse. De facto, apercebeu-se até que se distraíra com a evolução dos preços, que nem tinha dinheiro suficiente para pagar o bilhete de eléctrico até ao destino. Teve que fazer uma parte do caminho a pé. Aquilo que recebeu em direitos montava a 3.700 milhões de marcos. Era mais de 100 vezes do que o dinheiro com que saíra de casa, mas ao ritmo com que o dinheiro perdia o seu valor, era bem possível que dentro de dias aquilo que acabara de receber nem chegasse para comprar um litro de leite para a filha.
No dia seguinte, Elsbeth, que estava grávida de um segundo filho, foi às compras. Os preços eram diariamente actualizados. Havia um coeficiente chamado multiplicador que se aplicava aos preços de referência de 1913, de antes da (primeira) guerra (mundial). Em 2 de Novembro esse multiplicador atingira os 76.200 milhões. Assim, um grande pão de 2 kg. que custara 14 pfennig em 1913 (com um marco compravam-se 7 pães), cotava-se agora por quase 10.700 milhões de marcos (10.668 para ser mais preciso). Um quilo de batatas por 28.000 milhões. Estava-se a uma Sexta-Feira. Passado o fim-de-semana, na Segunda-Feira seguinte, o preço multiplicara-se por cinco: 140 mil milhões de marcos e começaram a eclodir revoltas e saques por toda a Berlim. Os alvos naturais foram as padarias, mercearias, talhos, leitarias... e os judeus que, tal como os Spoliansky, também se concentravam nos bairros de Berlim Leste, nas imediações de Alexanderplatz. Houvera um certo consenso entre a elite política e financeira alemã que não se devia colaborar de nenhuma forma com o pagamento das indemnizações de guerra exigidas pela França mas, com o efeito colateral da hiperinflação, pagava-se agora o preço da decisão num eminente colapso da sociedade alemã. A polícia, tão perturbada pela situação quanto os desordeiros, havia prendido uma cinquentena deles, de entre os milhares que se haviam aproveitado da ocasião. A 8 de Novembro o chanceler Gustav Stresemann encontrou-se em segredo no Hotel Continental com o banqueiro Hjalmar Schacht para que este, com os seus contactos, patrocinasse um programa de estabilização da moeda alemã que pusesse fim àquela loucura. Shacht veio a presidir ao Reichsbank e a criar o tal programa com o indispensável apoio de empréstimos externos, mas chegou tarde demais para salvar o governo de Stresemann, que caiu duas semanas depois.
Entretanto, até que o programa fosse aplicado, o dia-a-dia do cidadão comum era recheado de episódios bizarros. Escrever uma carta tornou-se um luxo: quando Spoliansky quis enviar uma a um seu parente de Munique descobriu que o preço do selo era 100 milhões de marcos – ou seja quase quatro vezes mais do que aquilo que ele trazia na carteira quando saiu de casa no dia 1 de Novembro. Para ler o seu jornal favorito, o Berliner Tageblatt (aprecie-se acima a primeira página da edição de 5 de Novembro de 1923), teve que fazer fila para ler o exemplar de um café. Naquele da custava 10 mil milhões de marcos, quase três vezes mais do que aquilo que recebera de direitos de autor dias antes. Mas, para além dos problemas pessoais, havia o problema das empresas: os empregados passaram a preferir ser pagos ao dia e era uma dificuldade arranjar o dinheiro em caixa para o fazer. E mesmo para as empresas que o faziam, havia uma vantagem para aqueles que conseguissem receber antes: havia quem se considerasse um felizardo porque o caixa era seu amigo e o pagava uma hora antes dos colegas, o que lhe permitia converter o dinheiro em mercadoria com vantagem, tal era o ritmo de desvalorização. Spolansky conseguiu um emprego nocturno como pianista num cabaré e recebia o pagamento cada noite: uma saca de notas que se tornava progressivamente maior a cada dia que passava. Para as bandas da Friedrichstrasse e da Kurfürstendamm, as zonas mais quentes de Berlim (abaixo, cenas do filme Cabaret passado na Berlim dessa época), a crise parecia funcionar como um estímulo, compreensível quando se pensa naqueles que tinham poupanças em dinheiro e que agora se viam incentivados a desembaraçarem-se delas. Outros especulavam comprando, que havia muitos em situações desesperadas e incentivados a vender.
Possuir qualquer tipo de moeda estrangeira era um privilégio e viveram-se imensas histórias estranhas a esse respeito. Houve quem tivesse vindo da Suécia imediatamente antes da crise com 20 coroas suecas (uma quantia irrisória) em notas de uma coroa. Trocando as notas a um ritmo cuidado, uma de cada vez, essa importância conseguiu sustentar uma família de quatro pessoas durante seis semanas. Um grupo de quatro jovens literatos que incluía Bertold Brecht fez uma habilidade parecida (embora com muito maior estadão) com uma nota de cem dólares emprestada por um amigo norte-americano. Jantavam em restaurantes caros e apresentavam no fim a nota para pagamento. Não houve restaurante algum capaz de a trocar: à velocidade a que evoluíram os câmbios, a nota chegou a representar muito mais que a facturação mensal de um qualquer estabelecimento comercial. Ao fim de duas semanas deste expediente devolveram a nota ao proprietário e liquidaram as despesas que entretanto se haviam desvalorizado para um quinquagésimo do valor original.
O ritmo da desvalorização tornara a concessão de crédito numa actividade sem sentido. Elsbeth deu entretanto à luz uma menina e foi com muita sorte – o mercado do arrendamento estava também, obviamente, caótico – que Mischa encontrou uma outra casa maior em Berlim Oeste. Na terceira semana de Novembro, a economia alemã regredira até à fase pré-histórica da troca directa (acima, uma fotografia de uma mercearia berlinense nesse louco mês de Novembro de 1923). Entretanto, em Munique, um grupo de radicais considerava que a desestruturação económica e social causada pelo desaparecimento da moeda abria uma oportunidade para que se processasse uma tomada violenta do poder. Desencadearam um putsch na noite de 8 para 9 de Novembro e falharam clamorosamente. Adolf Hitler, o seu líder, iria passar os próximos meses na prisão. No fim do mês de Novembro, foi criada uma nova moeda provisória a que se deu o nome de Rentenmark que valia 4,2 biliões (milhão de milhões) de marcos antigos. A nova moeda era garantida por uma Grundschuld (dívida hipotecária, obrigação imobiliária) de 4% sobre todos os bens agrícolas, florestais e industriais da Alemanha mas também e sobretudo por um empréstimo de 200 milhões de dólares concedido por um sindicato de bancos mobilizado pelos contactos de Schacht. A associação que, depois disso, se fez entre o impacto social da hiperinflação na Alemanha e a ascensão dos nazis ao poder é uma das fábulas que se perpetua até hoje. Iriam decorrer mais sete anos e quatro eleições legislativas até que os nazis passassem a ter relevo político na Alemanha; e outros dois anos e meio e mais três eleições adicionais até eles alcançarem o poder. A fotografia abaixo, entre o simbólico e o irónico, é de Frank Horvat.
Mischa Spoliansky (1898-1985), que sobreviveu como se pôde apreciar acima à crise do marco do Outono de 1923 em Berlim, emigrou em 1933 (ano da chegada dos nazis ao poder na Alemanha) para Londres. Veio a naturalizar-se britânico.
Para variar, um excelente poste - e a múltiplos títulos. Acresce, no meu caso, ser uma lição sobre esta matéria...que me atrevi a discutir sem a "apneia" deste conhecimento e, por isso, ter sido (assumo agora) crente na fábula aqui denunciada.
ResponderEliminarEste caso de associar a hiperinflação na Alemanha à ascensão dos nazis ao poder está muito longe de ser exemplo único de uma certa maneira de contar a «história», que dispensa o rigor dos factos em favor de uma narrativa mais escorreita e mais compreensível para o leitor, mesmo que, como na caso aqui desmontado, se force uma correlação entre acontecimentos apartados por nove anos e meio(!).
ResponderEliminarNão tem nada a ver com "apneia". Ou se conhece o assunto... ou não.