A prática de destacar o número prisional de um detido para realçar a sua submissão forçada perante a lei é prática antiga e bastante difundida. O senhor da fotografia acima foi colocado decerto num estabelecimento prisional bastante maior que o de Évora, para ter recebido um número assim tão elevado em vez do 44 de José Sócrates. Chama-se Abimael Guzman (1934-2021), era peruano e havia sido, até alguns dias antes de a fotografia ter sido tirada, o líder incontestado de um movimento guerrilheiro de inspiração maoista designado por Sendero Luminoso (Caminho Luminoso). A personalidade de Guzman, muito cultivada como costuma acontecer em qualquer organização genuinamente maoista e que se fazia tratar deferentemente por presidente Gonzalo, pode ser comparada pela ambição, pela brutalidade e pela discricionariedade de como exercia o poder ao angolano Jonas Savimbi da UNITA, mas também pela arrogância e pelo estardalhaço da sua retórica aos nossos estimados camaradas Arnaldo Matos e Garcia Pereira do nosso MRPP. O problema é que, para lá da retórica, os membros do Sendero Luminoso comportavam-se para com as populações das regiões que pretendiam libertar de uma forma tão ou mais repressiva do que os agentes do governo peruano que combatiam. A popularidade do presidente Gonzalo não seria particularmente elevada entre os peruanos quando, em 12 de Setembro de 1992, ele foi capturado escondido num apartamento de um bairro de classe alta dos arredores de Lima. E a fotografia acima, encenada pouco mais de uma semana depois numa conferência de imprensa, destinava-se a diminuir ainda mais essa popularidade, exibindo um presidente num fato riscado de presidiário, atrás de grades, gordo, de óculos e barba e sofrendo de psoríase, uma doença de pele que contribuíra para a sua captura (tubos de pomada vazios encontrados no caixote do lixo aumentaram as suspeitas dos vigilantes de que Guzman – que se sabia sofrer dessa doença – ali se escondia). A raiva do detido não consegue camuflar a humilhação pública de quem fora, até aí, incensado pelos seus seguidores como a Quarta Espada do Marxismo...
Completam-se hoje precisamente trinta anos dessa captura de Abimael Guzman, falecido há um ano, ainda na prisão. Os anos que ali passou tê-lo-ão feito perder alguma raiva, perder toda a barba e perder bastante peso. Quando regressou ao tribunal para novos julgamentos por outros crimes pelos quais fora considerado responsável, até parecia um velhote simpático (a fotografia abaixo é de 2013), algo alheado do que o rodeava, como acontecera com Adolf Eichmann em Telavive. Uma outra imagem que, ao contrário da inicial, nos suscitava a questão se ele teria sido mesmo capaz de ter sido responsável por tudo aquilo de que era acusado. Segundo os melhores cálculos, a insurreição no Peru terá custado a vida a um total de 70.000 pessoas (entre mortos e desaparecidos); segundo outros cálculos, esses mais contestados pelo governo, pela igreja e pelos militares, atribui-se a responsabilidade de ½ das vítimas à guerrilha e ⅓ delas ao governo. De toda a maneira, uma estimativa de 35.000 mortos continua a ser absurda qualquer que seja a causa e qualquer que seja o grande timoneiro.
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