(Republicação)
Na ressaca dos dias imediatos ao 25 de Abril de 1974, o Rossio e as outras mais frequentadas da baixa da Lisboa tornaram-se locais de um amplo trabalho de mobilização das massas populares. Ficaram famosos alguns trabalhos de cobertura fotográfica dessa mobilização com a identificação e prisão de agentes da PIDE ainda em liberdade em sequências que chegaram a ser publicadas em reputados órgãos de informação internacional (acima). Contudo, os 50 anos que entretanto decorreram podem permitir-nos vê-las, às fotografias, com uma atenção que o fervor revolucionário daquela época não possibilitava: dediquemo-nos ao militar assinalado (qual barão desarmado de Camões...) que, na última fotografia da série acima, arrasta para longe da fúria popular o pide ensanguentado.
A sua cara está apontada directamente para a objectiva e a sua expressão é indiscutivelmente triunfal, embora a exuberância do bigode, que não tardaria a banalizar-se num exército que passara a estar sempre, sempre ao lado do povo, nos comece a dar os primeiros sinais de suspeita, por não ter podido crescer até àquela exuberância anti-regulamentar nos escassos dias então decorridos depois do 25 de Abril... Melhor: o lídimo representante do MFA envergava uma das vulgares fardas de trabalho (designada por nº 2, salvo erro) onde coexistia uma barreta de condecorações com uma (condecoração) propriamente dita (o que nunca se faz) e esta era, nada mais, nada menos, do que uma cruz de guerra, que se atribui por feitos em combate. Isso não impedia que esse heroísmo redobrado coexistisse com uma notória falta de aprumo (uma camisa desbarrigada, um porta-chaves demasiado à vista), talvez explicável pelos dois números que faltariam ao blusão para que ele assentasse devidamente ao nosso herói. Nas suas platinas nem galões nem divisas, sugerindo que, apesar do ar de quem lidera o destacamento, se estava perante um soldado básico, um condutor de homens inato, mas modesto...
Naquele ano de 1974, a Páscoa fora recente, calhara a 14 de Abril, o Carnaval fora por isso em finais de Fevereiro mas, em finais de Abril parecia ainda haver quem se divertisse mascarado em pleno Rossio e – bónus suplementar para o folião – sem que ninguém desse ou se incomodasse com isso… Suspeito que faltaria ao criador original (José Carlos Ary dos Santos) a capacidade de saber rir deste caminho aonde o poderia levar a ironia dos seus próprios versos, mas creio que esta também foi mais uma das portas que Abril abriu…
Acompanhado dos votos de que tenha passado uma Páscoa Feliz, e continuando a ler, diariamente, o seu blog, tomo a liberdade de lhe fazer chegar um pequeno contributo sobre o texto que publicou hoje.
ResponderEliminarNada posso acrescentar sobre a situação retratada na foto, pois nasci em Junho de 1974 e não tenho qualquer tipo de memória desses tempos mais agitados.
No entanto, no texto refere, com uma interrogação, é certo, que o protagonista trajava uma farda Nº 2 designada “de trabalho”.
Sendo certo que passei pelas fileiras muito tempo depois, já no final do seculo XX, quando tinham desaparecido as jaquetas (sobravam apenas as de cabedal) substituídas pelos dólmanes, julgo que não tendo sido mudadas as designações, aquela seria efectivamente uma farda Nº 2, não “de trabalho”, mas sim “de serviço”, sendo utilizada no dia a dia por quem tinham funções administrativas ou se encontrava de serviço à Unidade. Havia em finais da década de 90 uma farda Nº 3, essa sim “de trabalho”, cujas calças tinham bolsos laterais na coxa. Era usada com dólman e barrete de pala. Creio que em meados da primeira década deste século essa farda de trabalho foi, por uma questão de marketing, substituída pelas fardas de camuflado que até então eram apenas utilizadas pelas Unidades em missões no exterior.
Tendo em conta a ausência de gravata, na fotografia de baixo, não sei se o soldado que empunha a espingarda, não está num misto de fardas Nº 2 e Nº 3. As calças parecem-me da farda Nº 2, mas a camisa, parece-me uma camisa de farda Nº 3 que ainda era usada no final do século XX no interior das Unidades, mas que já não constava dos planos de Uniformes. Era, essa camisa, uma peça disputada, sobretudo, por quem fazia trabalhos de manutenção por ser de utilização mais prática que o dólman.
E porque terminou com uma nota sobre o Carnaval, recordo que, nessa altura (final da década de 90), tinha o Museu Militar uma funcionária de limpeza, que havia conseguido uma farda Nº 1. Todos os anos aproveitava o Carnaval para a passear. Mudam os tempos, mas o espírito dos foliões permanece igual. Há sempre alguém a querer vestir, nem que seja por umas horas a pele que não lhe pertence habitualmente.
Espero que continue a publicar diariamente, continuando a manter a capacidade de encontrar temas e abordagens que saem da mediocridade.
Com os melhores cumprimentos,
João Tiago Tavares