Londres, 20 de Dezembro de 1930. A notícia que dá conta da «satisfação» da «imprensa e dos principais meios políticos» britânicos pela nomeação de Lorde Willingdon para Vice-Rei da Índia é uma daquelas aldrabices que, suponho, hoje já não seria possível, porque a cumplicidade da imprensa com as mentiras oficiais se reveste de outros contornos, menos excessivos. Na verdade, Lorde Willingdon foi uma daquelas mediocridades cuja carreira só se consegue explicar pelo carácter fechado e protector da aristocracia britânica para com os seus membros. Aqui há cinco anos escrevi no Herdeiro de Aécio um poste com a sua biografia, para explicar na prática a diferença entre os conteúdos que se podem ler na literatura tradicional e as biografias normalmente edulcoradas que são publicadas na Wikipedia. Intitulado «UMA BIOGRAFIA COMO NÃO SE PODE LER NA WIKIPEDIA», eis aqui abaixo a sua reedição:
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Havia uma anedota antiga que falava de um infeliz que nascera com o nome de José Merda. Até que conseguiu obter autorização oficial para mudar de nome: e passou a chamar-se João Merda. Ao biografado, um futuro Vice-Rei da Índia, também aconteceu algo de semelhante. Aos 26 anos obteve autorização régia para mudar de nome e registou uma mudança também assim bizarra: deixou de se chamar Freeman Thomas para se passar a chamar Freeman Freeman-Thomas (1866-1941) - como se fosse gago. No círculo aristocrático onde nascera, Freeman Freeman-Thomas notabilizara-se pelo seu desembaraço físico – foi um grande jogador de cricket – e pelas amizades – era um dos parceiros de ténis do neto mais velho da rainha Victória, o futuro Jorge V (1865-1936). Casou bem, com uma das filhas do Conde Brassey (1836-1918), um político liberal, que chegou a ser Governador na Austrália e que lhe deu o seu primeiro cargo político como seu ajudante-de-campo em 1897.
Freeman-Thomas terá sido aquilo que se qualifica como uma daquelas pessoas simples, bem-nascidas e bem relacionadas, que, por causa disso (mas somente por causa disso) foram ascendendo na vida. Mas as fotografias não enganam: dão-lhe a cara de estúpido que ele deve ter sido toda a vida. Membro liberal do Parlamento em 1900, membro do governo (num cargo muito discreto) em 1905, quando o seu amigo Jorge V se tornou rei em 1910 nobilitou-o: tornou-se Lord Willingdon. Começou por ser barão, depois foi promovido a visconde (1924), conde (1931) e acabou a vida sendo marquês (1936). Pelo meio realizou uma preenchida e destacada carreira como administrador colonial coincidindo – não por acaso – com o reinado do seu amigo Jorge. Governador de Bombaim (1913), Governador de Madrasta (1919), Governador-Geral do Canadá (1926) e finalmente foi Vice-Rei da Índia de 1931 a 1936.
Na sua passagem prévia pela Índia destacou-se... por não se destacar, a não ser por questões triviais, à conta de um conservadorismo em que ele, teoricamente um liberal, passava por reaccionário quando em comparação com políticos conservadores, como foi o caso do seu antecessor no cargo de Vice-Rei, Lord Irwin. Num desses gestos com uma ampla repercussão posterior, provocou a perpétua inimizade de Mohammed Ali Jinnah (que viria a ser o líder da Liga Muçulmana e considerado o fundador do Paquistão), no dia em que, num jantar de cerimónia em Bombaim, mandou trazer algo que cobrisse o decote do vestido de noite parisiense da belíssima Ruttie Jinnah, atitude que provocou o abandono imediato e ultrajado do casal. (Não se deixe escapar o detalhe desses anos outros em que um marido muçulmano (embora pouco) se ofende com o gesto de um cristão que manda cobrir a sua esposa...)
A verdade é que, por muito que Jinnah nunca mais se dispusesse a perdoar-lhe, Lord Willingdon não era má pessoa: era apenas desesperadamente estúpido. Edwin Montagu, que por esses anos era seu superior hierárquico como Secretário de Estado para a Índia descrevia-o: é um gajo tão porreiro e um gajo tão estúpido¹. No geral, não impunha nem respeito nem receio: certo dia o Vice-Rei foi barrado à entrada não de um, mas de três clubes de Bombaim porque ia acompanhado de um Marajá indiano e os clubes eram exclusivos europeus. E ninguém pareceu temer as suas retaliações... Quando Lord Linlithgow – de que já aqui se falou – lhe sucedeu no cargo de Vice-Rei em 1936, encontrou enormes resmas de documentação oficial a aguardar assinatura. Apercebeu-se que Willingdon nem lhes pusera os olhos em cima.
Em contraste com esta personalidade displicente, a de Lady Willingdon era um pouco excessiva e abrasiva demais: as críticas a Maria Adelaide Freeman-Thomas (1875-1960) incidiam sobre a combinação poderosa entre a sua vulgaridade e uma vitalidade que parecia infindável. Um dos seus hobbies era a decoração e os alvos foram muitos dos inúmeros quartos do Palácio dos Vice-Reis em Nova Deli que acabaram pintados da sua cor favorita: malva. Quando Edwin Luytens, que fora o arquitecto do edifício e de muitos outros na cidade, tentou criticá-la ironicamente pelo mau gosto, o resultado não foi o esperado: «Disse-lhe que, se ela fosse dona do Partenon, ainda lhe iria acrescentar janelas panorâmicas, ao que ela me respondeu, muito séria (e sem vislumbrar a ironia), que não gostava do Partenon»... Apreciemo-la nesta fotografia final em que, para ficar da mesma altura do marido, se colocou no degrau seguinte. Não vem a propósito, mas faz-nos lembrar Maria Cavaco Silva.
¹ such a good fellow and such a stupid fellow.»
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