Quando se lê uma notícia como a acima, a pergunta que me parecer impor-se a seguir à reacção escandalizada, é a de saber em que fase do processo da construção europeia se criaram as condições para que um luxemburguês se possa arrogar o direito de decidir o que é o "caminho certo" que Portugal deve trilhar? Nem vale a pena lembrar que, quando a situação era a inversa, nem passou pela cabeça do antecessor de Juncker pronunciar-se sobre o "caminho certo" das controversíssimas políticas fiscais do Luxemburgo. Se calhar devia, mas ele é mesmo assim. Manda quem pode, mas o obedece quem deve é, à escala europeia, muito mais retorcido do que a linearidade como o nosso ditado é assumido em Portugal. Contemos uma história que, não tendo directamente a ver com o assunto, mostra como os países, mesmo países muito recentes e integrados em superestruturas mais robustas do que a União Europeia, se podem mostrar ciosos da sua soberania.
Viajemos até ao período dos finais do Século XIX e à Segunda Guerra Anglo-Bóer (1899-1902). No conflito e para impor a sua vontade às veleidades independentistas dos africânderes intervieram não apenas a metrópole britânica mas também algumas das colónias e domínios que formavam o Império Britânico. O caso individual mais famoso de uma participação (quiçá irónica, quando se sabe o que veio a acontecer posteriormente...) como discípulo do Império britânico, terá sido Gandhi (assinalado na fotografia acima) que, fiel ao seu pacifismo, fez parte de uma unidade de apoio médico-sanitário. Mas o contributo militar mais significativo terá sido o dos australianos (29.000). A Guerra Anglo-Bóer caracterizava-se por ser uma guerra tecnicamente equilibrada (ao contrário dos outros conflitos coloniais de então) porque o armamento das duas partes se equivalia, mas era simultaneamente o primeiro de um dos muitos conflitos assimétricos que o Século XX iria conhecer, porque o potencial das duas repúblicas bóeres era infimamente inferior ao do Império britânico.
Não podendo defrontar em pé de igualdade os exércitos britânicos, o conflito transferiu-se ao fim do primeiro ano, para a capacidade dos britânicos em conseguir controlar efectivamente os territórios de onde ainda não conseguira desalojar as pequenas unidades adversárias (designadas por comandos, como a que aparece retratada acima), que faziam da mobilidade e da sua familiaridade com o terreno os seus melhores activos para colocar em cheque as forças de ocupação. Foi nessa tarefa de contra-guerrilha que as unidades australianas mais se distinguiam e não pareciam ter rival entre as forças britânicas, com as condições naturais do veld sul-africano a assemelharem-se imenso às existentes no outback da sua Austrália natal. Simultaneamente, o contingente australiano notabilizava-se também pela sua indisciplina. Recém desembarcados na África austral, em trânsito por Moçambique, numa concessão que valeu muitas críticas ao governo português da época, os australianos distinguiram-se, entre outros episódios menos guerreiros, pelas más memórias que deixaram da sua passagem pela rua Araújo, uma célebre artéria de Lourenço Marques.
Entre eles, o tenente Harry «Breaker» Morant (1864-1902), que adquirira essa alcunha por ser um domador de cavalos (entre outras actividades), um oficial que não se teria distinguido se, com outros, não tivesse sido julgado e executado por ter morto nove prisioneiros (brancos) em retaliação pelas baixas suportadas pela sua unidade em emboscadas montadas pelo inimigo. O episódio não devia ter história, do ponto de vista da justiça militar. O mesmo já não se passou do ponto de vista político. A Austrália era então um país recente e cioso da sua soberania (nascera a 1 de Janeiro de 1901). As sentenças foram assinadas pelo general Kitchener que, além de britânico, transmitira instruções informais às tropas no terreno para que se adoptasse uma atitude hostil para com os adversários que se rendessem e se seguisse uma política de terra queimada para com os civis - que se viria a saldar por dezenas de milhares de mortos em campos de concentração. Além disso, as execuções tiveram lugar logo 18 horas após a leitura da sentença. Quando foram conhecidas na Austrália, foram consideradas como um colossal exercício de hipocrisia praticado pelos metropolitanos.
Tanto foi o desagrado, que na Austrália se procedeu a um esforço colectivo para transformar a figura controversa de «Breaker» Morant numa espécie de herói popular, inclusive com veleidades de poeta. Há um filme de 1980 narrando a sua história. Mas o impacto mais imediato e que interessará mais realçar, foi que os australianos, por muito leais membros que fossem do Império britânico, rapidamente retiraram aos tribunais militares britânicos a competência para julgar os seus soldados, mesmo em situação de guerra. Um exemplo enorme dessa diferenciação judicial aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial em que, a par dos cerca de 350 soldados britânicos executados por deserção ao longo do conflito, a Austrália não executou nem um só dos seus. As jurisdições, mais do que se imporem, aceitam-se. E, para voltar ao assunto inicial, e ao contrário dos Paulos Rangéis e dos Franciscos Assis que se nos apresentam em eleições europeias como se se tratassem de alternativas políticas, não estou disposto a aceitar que um luxemburguês, um alemão, um holandês ou um outro de uma outra nacionalidade nos venha definir o que é o "caminho certo".
Sem comentários:
Enviar um comentário