Há já uma boa dúzia de anos eu tinha um convidado regular cá de casa que bebia whisky a um ritmo que vários factores desaconselhariam: a moderação, a contenção, a educação. A cada incursão, muito mais de metade da garrafa de serviço vinha abaixo, transformada numa exuberante boa disposição de fala arrastada por parte do conviva à saída. Mas não havia maneira de o sensibilizar. Não havendo nada que se pudesse fazer para cercear a regularidade das suas visitas e não se podendo fazer mais nada em relação aos outros incómodos, tive, ao menos, que tomar medidas para reduzir os encargos com o special guest star. Sendo o visado pessoa cuidadosa na avaliação da reputação dos rótulos dos whiskys, foi seleccionada uma garrafa de uma dessas marcas reputadas, que teve a particularidade de, por muitas visitas, jamais se esvaziar, já que depois era regularmente reabastecida com whiskys de mais baixa proveniência. Mas o importante é que o destinatário de tal garrafa cativa parecia não dar pela diferença, lembro-me até de que os elogios à qualidade da bebida que eu servia continuaram a fluir. O importante é que eu, o anfitrião, continuava a deixar o meu convidado feliz, embora a um custo mais em conta. Anos depois, e em conversa com um outro amigo, ele confessou-me que fizera precisamente o mesmo com uns primos, que o que sabiam apreciar no whisky era o rótulo da garrafa. Tal seria a incapacidade de apreciar a bebida independentemente da apresentação da garrafa que a esse amigo devo uma frase assassina a respeito deste assunto: - Eles (dizia ele, referindo-se aos primos) até podiam depois cegar, mas do whisky é que não fora, de certeza: se o rótulo era de uma marca prestigiada!...Nestes fenómenos sociais, as caricaturas tendem a repetir-se mudando as circunstâncias. No caso, nota-se, nas redes sociais, uma tendência muito difundida para que as opiniões sejam valorizadas tomando em consideração a identidade do autor (ou seja, o rótulo da garrafa) em vez da avaliação incidir, caso a caso, conforme a valia da opinião que é emitida (ou seja, o whisky). Ainda muito recentemente, e a propósito do equilíbrio ideológico e da valia das opiniões emitidas pelo jornalista José Gomes Ferreira da SIC, a apresentação do exemplo flagrante da sua opinião de que o BES era um banco sólido, dada a um mês do seu colapso(Junho de 2014!), não chegou para convencer o meu interlocutor que talvez não estivéssemos na presença do mais presciente dos jornalistas. Como o meu convidado de outrora, também este meu interlocutor recente se regerá (intelectualmente) pela lei de que um whisky que venha de uma garrafa com um rótulo que lhe tenham dito que era bom, é equivalente a considerar que se trata de um whisky que não provoca má ressaca. Mesmo que o próprio esteja a padecer da ressaca...
Para eles, há os opinadores que escrevem aquilo que se gosta de ouvir e com os quais se concorda a 100% e há os outros, que são os nossos alvos de estimação e com os quais nunca se concorda. Todos somos humanos e temos dias melhores e piores, mas também todos padecemos em algum grau dessa pecha do primarismo de avaliarmos os conteúdos pelos embrulhos e é para me penitenciar do pecadilho que hoje venho destacar pela positiva uma das apreciações de um dos meus alvos de estimação, Vasco Pulido Valente, que na coluna de opinião semanal do Público, foi o único que li a chamar a atenção - e, a meu ver, muito bem - para a ligeireza como na América se contemporiza com as execuções extra-judiciais (acima). É que a execução extra-judicial de Ossama bin Laden há nove anos permanece um assunto incómodo, com o qual os Estados Unidos não lidam, enterrando o assunto e evitando regressar (muito menos responder) às perguntas ainda em aberto. Contudo, a execução de Qassem Suleimani, porque se trata de um alto funcionário iraniano, é um gesto substancialmente mais grave e que, como Vasco Pulido Valente regista, foi arrumado mediaticamente nos Estados Unidos (e quase por arrasto, no resto do mundo) com a simplicidade maniqueista de um enredo de uma história do faroeste. Suleimani era um índio e não houve ninguém que se pronunciasse pelo direito aos índios, mesmo maus, a terem um julgamento prévio. (Ninguém será ingénuo para admitir que esta mesma lógica se aplique aos cowboys; se, por exemplo e oportunamente, os iranianos montarem uma operação para liquidarem Gina Haspel, a directora da CIA, que terá responsabilidades tão sórdidas na condução de operações clandestinas quanto as de Suleimani, a reacção seria diametralmente oposta.) Mas, e porque o assunto é mesmo sobre a apreciação ao conteúdo e aos rótulos das garrafas de whisky, não gostaria de o terminar sem dar um exemplo oposto ao de um bom whisky numa garrafa de proveniência duvidosa, com Vasco Pulido Valente a produzir opiniões atendíveis. E esse exemplo bem pode ser o artigo de hoje de Vicente Jorge Silva no mesmo Público sobre a aprovação do orçamento. Normalmente gosto do que ele escreve mas hoje, se não lhe tinha batido a inspiração, não tinha escrito nada. Se o Vasco falou de algo que ninguém teria falado, o Vicente falou de algo que todos já tinham falado.
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