Há noventa anos uma parte significativa do jornalismo era produzido tomando em consideração dois níveis diferentes de leitores: os entendidos e os outros. Tomemos o exemplo da notícia em destaque acima, na edição do Diário de Lisboa de 13 de Janeiro de 1930, que remete para «um mistério que se desvendara, envolvendo a morte da bailarina Gaby Deslys». O cerne da questão, que eventualmente justificaria a publicação da notícia era Gaby Deslys (1881-1920). Gaby Deslys morrera cerca de dez anos antes desta notícia e não era propriamente (apenas) uma bailarina como a notícia a designa. As entradas na wikipedia dão-na como actriz, cantora e também uma corista de nacionalidade francesa. Como tantas outras suas colegas daquele tempo, a carreira de Gaby Deslys fora promovida simultaneamente não só pelos seus talentos, como também pela notoriedade dos seus amantes conhecidos. Ora o mais famoso dos amantes de Gaby Deslys - e é aqui que se explica o eventual interesse dos leitores portugueses pelos mistérios associados à sua herança - fora o ex-rei de Portugal, D. Manuel II (1889-1932). Fora um problema político explorado pela oposição republicana quando durara (por volta de 1910), mas nada sobre o assunto aparece referido na notícia. Admite-se que, porque o antigo soberano fosse vivo, houvesse o cuidado de não referir esse facto. Ou então essas coisas não apareciam nos jornais. Ou então, ainda, poderão ter sido os cuidados da censura. O que interessa compreender é que, sem essa informação, que teria que lhe chegar por outras vias (extra-jornal), o leitor jamais perceberia qual o remoto interesse desta notícia - que é que lhe interessaria as vicissitudes da herança de uma obscura actriz francesa que morrera há dez anos?...
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