Chin Peng (1924-2013), que foi um dos líderes da guerrilha comunista na Malásia durante e após a Segunda Guerra Mundial, conseguiu passar em seis anos de um oficial condecorado pessoalmente pelo Comandante Aliado Supremo para o Sudeste Asiático, Lorde Louis Mountbatten, em 1946 (acima), para um proscrito com a cabeça posta a prémio pelas mesmas autoridades britânicas que o haviam condecorado (abaixo, uma edição de um jornal malaio de Maio de 1952).
É uma evolução muito simbólica das contradições associadas à insurreição malaia, que foi uma guerra colonial clássica com o desfecho previsível – a retirada da potência colonial – mas que os britânicos conseguiram disfarçar de uma forma tão subtil, que ainda hoje há quem pretenda que seja um dos poucos casos singulares em que uma potência colonial venceu uma guerrilha.
Os equívocos começam logo pela designação do conflito: se os franceses travavam nessa mesma altura uma guerra na vizinha Indochina, os britânicos tiveram a habilidade de designar a que se travava na Malásia como uma emergência. Essencial para o resultado final, o grande pomo de discórdia que desencadeava as chamadas lutas de libertação nacional dos países colonizados não chegou a existir na Malásia: o Reino Unido rapidamente anunciou a sua intenção de conceder a independência àquele país, concessão que se veio a concretizar em 1957. A luta travou-se assim exclusivamente à volta das condições em que a transferência dos poderes se processaria: quem os receberia das autoridades coloniais. E aí, os britânicos aplicaram-se a ganhar as simpatias da comunidade malaia e muçulmana, que era (e é) maioritária, em detrimento da minoria de origem chinesa onde os rebeldes iam recrutar a maioria dos seus combatentes. E lutaram, com os próprios malaios, para que fossem eles a deterem as rédeas do poder durante toda a extensa transição. Este processo de dividir para reinar sobre povos submetidos é tão antigo quanto os romanos e nem sempre é bem-sucedido (os próprios britânicos falharam em Chipre), mas na Malásia correu bastante bem.
Sobre este género de conflitos, há quem não tenha percebido o principal, concentrando-se nos sucessos (ou insucesso) dos programas políticos no terreno ou nos pormenores das tácticas militares adoptadas pelos beligerantes, quando há que perceber , antes disso, a importância da superestrutura política sob a qual uma administração e um exército colonial podem operar. Se os franceses, por exemplo, se tivessem mostrado disponíveis para conceder a independência à Argélia logo a partir de meados da década de 50, mesmo num horizonte de dez a doze anos, tê-la-iam abandonado à mesma, mas teriam possivelmente também salvo a face política e militar do seu país. Simplesmente, aquela hipótese nunca esteve na agenda política francesa até ser tarde demais, com a chegada de Gaulle ao poder em 1958. No nosso caso português, o tarde demais ainda foi mais atrasado pelo facto do regime não ter capacidade de se regenerar. Há quem ande pelo Observador a rever a nossa História colonial recente (e faz bem), mas conviria que se documentasse melhor - sobretudo de uma outra forma, de horizontes mais alargados a outras realidades - sobre as conclusões que quer que tiremos sobre os últimos dias do império. Que tal justapor-se o comportamento negligente dos nossos soldados em África depois do 25 de Abril com o dos soldados espanhóis na defesa da sua colónia do Sahara, por esses mesmos anos de 1975/76?
Apesar de tudo, e independentemente do julgamento que possamos fazer do comportamento dos nossos soldados em África depois do 25 de Abril, parece-me que a justaposição proposta também não leva em conta um aspecto fundamental: o que uns e outros defendiam ou era suposto defenderem. Imagino que os soldados espanhóis não avistassem ou tivessem conhecimento da existência de muitos conterrâneos ou bens naquelas paragens…
ResponderEliminarPois. Eu acredito que esse último argumento possa parecer bastante válido, o problema é que os soldados estão lá para defender a soberania nacional. É de resto muito engraçado que eu já tenha lido um argumento muito parecido como o invocado, mas vindo da outra extremidade do espectro político, quando a questão é a de desculpar a conduta do exército português na Índia em 1961 - também por lá não havia muitos conterrâneos que preferissem ficar ligados a Portugal.
ResponderEliminarMas o problema não é esse, que eu até tento compreender as razões para o comportamento das tropas portuguesas em 1961, espanholas em 1975 ou francesas em 1962, quando souberam da assinatura dos Acordos em Evian e deixaram em muitos lugares de assegurar a segurança dos argelinos de ascendência europeia (veja-se o massacre de Oran em Julho de 1962).
O que não se pode fazer é cobrir os assuntos da descolonização portuguesa pecando por omissão em dois aspectos cruciais: a) Subentendendo-se que as descolonizações tendiam a correr bem, connosco é que correram mal - o que é manifestamente falso; b) Subentendendo-se que a questão da descolonização se começou a colocar a partir do 25 de Abril de 1974, quando ela se começara a colocar mais de uma dúzia de anos antes - as tropas de 1974 não tinham o mesmo ânimo daquelas que haviam partido em 1961 entoando que "Angola é (era) Nossa".
Só a omissão destes dois aspectos é que permite um certo género de revisionismo histórico - que eu reputo necessário, mas que no caso do texto de Helena Matos para onde linquei está feito de uma forma primária e excessiva.
São opiniões.
EliminarRespeitando o seu ponto de vista – e concordando com alguns dos seus argumentos – faço outra interpretação do texto em causa, onde não encontro provas de que estejam subentendidos os dois aspectos que aponta. Aliás, no mesmo “Observador” encontra textos ( https://www.google.com/url?q=http://observador.pt/especiais/uma-descolonizacao-voluntarista/&sa=U&ei=I4X4VJCsEIHkgwTPlIDYCQ&ved=0CAkQFjAC&client=internal-uds-cse&usg=AFQjCNFXE1iDVkTKQc-NMx7IuJD_8FpasQ ) ou programas ( http://observador.pt/videos/conversas-2/o-livro-de-spinola-que-ajudou-a-mudar-portugal-apesar-de-se-enganar-em-quase-tudo/ ) em que, precisamente, se enfatiza a circunstância do tema “descolonização” constar dos debates e preocupações de certas “elites” muito antes do 25 de Abril (concordemos ou não com essas visões ou opiniões).
No que se restringe ao texto em questão, o resumo e conclusão que dele extrairia seria:
- “Para os políticos e chefias militares que falharam no seu imaginário de libertadores, o “batalhão em cuecas” funcionou como derradeiro argumento desculpabilizador. Nas mãos daqueles que em 1974 e 1975 aplicavam à prossecução dos seus objectivos ideológicos o que tinham aprendido nos manuais militares de acção psicológica, o “batalhão em cuecas” foi uma notável peça táctica.”
- “Depois de terem querido manter o império e feito cair o regime, as Forças Armadas portuguesas começavam um combate que as levaria a uma sucessão de golpes e contra-golpes. E nesse combate valeu quase tudo. De Cabinda em Angola, a Omar em Moçambique, após o 25 de Abril de 1974, as Forças Armadas portuguesas lutaram impiedosamente. Contra si mesmas.”
O deplorável e anárquico comportamento dos soldados (que infelizmente tivemos oportunidade de presenciar e testemunhar também por cá, na metrópole) mais não foi que o resultado da desestruturação e quebra das cadeias de comando, que se deixaram dominar ou ultrapassar por facções com agendas políticas e ideológicas muito próprias. A tal ponto que o cenário de guerra civil por pouco não se verificou também em Portugal.
Relativamente ao caso da Índia – e não me pronunciando sobre o número dos que prefeririam ter continuado portugueses – a questão punha-se, efectivamente, em termos de defesa da soberania. Líricas ou criminosas as ordens para lá transmitidas tinham precisamente essa finalidade e assim as interpretou e executou Oliveira e Carmo, que não sendo Brigadeiro também não quis sujeitar-se a vassalagem.
Opiniões são sempre opiniões mas nem sempre elas se equivalem. Há aquelas que procuram manter a coerência, consistência e fundamentação de como são emitidas e há outras.
EliminarSobre coerência, repare-se como aquilo que ficou escrito sobre a descolonização do Sahara espanhol três comentários mais acima contradiz-se frontalmente com o que está acima escrito sobre a Índia portuguesa. Lendo-as, subsiste a dúvida: deve-se ou não se deve defender as possessões coloniais em qualquer das circunstâncias? Ou tudo dependerá do número de pessoas com interesse a defender? Ou tudo depende da nacionalidade da potência colonial?
Sobre consistência note-se que a minha crítica a selectividade da narrativa histórica dirige-se ao artigo de Helena Matos, não ao Observador em geral, muito menos às charlas do José Manuel Fernandes com o Jaime Gama e o Jaime Nogueira Pinto, nem sequer à própria Helena Matos – que ela sabe que houve uma guerra colonial com 13 anos e que à data do 25 de Abril havia um problema colonial; o que não lhe conveio é, para efeitos de argumentação do artigo, lembrá-lo, muito menos destacar o seu arrastamento e o impacto que isso teve na forma como e processou a descolonização.
Finalmente, quanto à fundamentação, ela tem que assentar num conhecimento razoável da História. Não vale a pena pôr no mesmo pé de igualdade, no caso da Índia portuguesa, a decisão de um comandante de uma lancha LFP – Oliveira e Carmo – com uma tripulação de 6 homens e o general responsável – Vassalo e Silva – por uma guarnição que teria quase mil vez mais efectivos. Mesmo que o mesmo desfecho fosse possível, uma espécie de suicídio colectivo de uma guarnição poderia ter sido um grande argumento político mas não costuma ser considerado como um grande feito de armas – hoje poucos recordarão o nome de Kuribayashi, o general japonês que defendia Iwo Jima e que ali se deixou morrer com mais de 21.000 homens.
E, ainda a propósito das fundamentações que se podem tirar das lições da História, teria convido que Helena Matos também se tivesse apercebido que, noutras circunstâncias mas também no decurso de guerras coloniais que se arrastavam sem resolução à vista, houve quem se tivesse aplicado na “prossecução dos seus objectivos ideológicos” com aquilo “que tinham aprendido nos manuais militares de acção psicológica” para um objectivo ideológico antagónico ao dos capitães do MFA, o prosseguimento da luta colonial: foi o «putsch» dos generais da Argélia em Abril de 1961. Que fracassou porque a esmagadora maioria do contingente de combatentes na Argélia os “deixou completamente na mão”. O contraditório (possível) em História às vezes pode ser muito decepcionante.
Não sei se o meu interlocutor e, sobretudo Helena Matos, saberão o que foi o «putsch» dos generais ou o massacre de Oran ou ainda outros episódios embaraçosos das histórias coloniais como aquilo que aconteceu com a descolonização britânica do Iémen do Sul. Ou se haverá mesmo algum interesse em sabê-lo, na medida em que isso poderá perturbar a assertividade das opiniões já de há muito consolidadas. Eu tenho de Helena Matos a ideia que, se não o fez, se não investigou, se não se documentou, é porque não quis, porque já a vi fazer isso para outros assuntos em que a investigação pôde robustecer os argumentos e a carga ideológica das suas opiniões (veja-se Os filhos do Zip-Zip) sobre assuntos daquela mesma época.