Já neste desenho acima de 1975 de João Abel Manta, o autor desenhava um povo reclamando contra os políticos. Quarenta anos passados, o problema da falta de acomodação entre um e os outros parece persistir. Mas, na sua subtileza dialéctica, percebe-se como o artista nos pretende dar a entender que, na sua igualdade, há uns políticos que são mais iguais que os outros, parafraseando Orwell. Há os que viram as costas às justas admoestações populares (Soares e Sá Carneiro) e há o que as parece aceitar (Cunhal). Pormenor de somenos, porventura aritmético e sem qualquer significado artístico-político, que os partidos dos dois primeiros houvessem recebido em conjunto o quíntuplo dos votos populares do partido do outro nas eleições realizadas em Abril desse mesmo ano...
31 março 2015
MALDIVAS E OS EFEITOS DE UM CASO DE TRINTA ANOS DE HEGEMONIA POLÍTICA INSULAR
As Maldivas são um país que nem importará saber onde fica a não ser que se esteja à procura de destinos de férias. Nesse aspecto, este arquipélago com 300 km² e 340.000 habitantes no Oceano Índico, situado quase em cima do Equador, é uma referência do que pode ser um local paradisíaco, deduza-se pelas fotografias anexas. Infelizmente e ao contrário do que acontece com o Paraíso original, o governo local não se tem caracterizado pela reconhecida bonomia de São Pedro. Em 2008, havia um presidente que já lá estava há 30 anos (Abdul Gayoom¹), quando houve oportunidade de realizar as primeiras eleições presidências livres. E Gayoom perdeu-as (em duas voltas) para um senhor chamado Mohamed Nasheed que recebeu 53,6% da votação popular. Acredita-se que os resultados eleitorais não agradaram às forças vivas locais. Em Fevereiro de 2012 Nasheed terá sido forçado a renunciar, sendo substituído interinamente pelo vice-presidente Whaeed Hassan. Nas eleições presidenciais que se seguiram, em Setembro de 2013, o derrubado Nasheed venceu-as mas alcançando apenas uma maioria relativa (45,4% dos votos), o que tornaria necessária uma segunda volta; o Supremo Tribunal anulou-as. Houve novas eleições em Novembro seguinte, Nasheed tornou a vencer a primeira volta (46,9%) mas perdeu a segunda volta (a decisiva) para o outro candidato (e novo presidente) Abdulla Yameen (51,4%),...
...por acaso um irmão mais novo de Abdul Gayoom (surpresa!), o ex-presidente que lá havia estado por 30 anos. Admitamos, ainda assim, que Mohamed Nasheed tem tido politicamente azar. Pois bem, recentemente ele teve ainda mais azar, porque o mês passado foi detido, julgado e condenado a 13 anos de prisão ao abrigo de uma lei anti-Terrorista. Mohamed Nasheed (além desta vocação terrorista) possui uma boa imagem internacional por causa das suas posições a respeito das consequências do aquecimento global (as Maldivas arriscam-se a ficar submersas com a subida do nível dos oceanos), mas isso não obstou a que o judiciário local – que se adivinha estar fortemente conotado com a facção Gayoom – tivesse procedido a uma condenação que é uma palhaçada. Trinta anos de poder indisputado no isolamento de um ambiente insular parecem conduzir a embriaguezes políticas deste cariz. Visto em perspectiva e quanto a políticas insulares, tantos foram os elogios à sua despedida que suspeito que ainda devemos agradecer a Alberto João Jardim por ter permitido uma transição tão suave na Madeira... ou então agradecer aos pais de Alberto João Jardim por não haver um irmão mais novo que lhe sucedesse.
¹ Eleito originalmente em 1978 com 93,0% dos votos, reeleito sucessivamente em 1983 (95,6%), 1988 (96,4%), 1993 (92,8%), 1998 (90,9%) e 2003 (90,3%). Um homem muito popular, como se depreenderá...
30 março 2015
BRINCADEIRAS PROIBIDAS
Aqueles que são idolatrados em excesso por uma geração tendem a ser ridicularizados pelas que se lhe seguem. O que incomodará na revisitação da visita de há quarenta anos de Jean-Paul Sartre a Portugal, mais do que a atitude do próprio, foi a atitude deferente, a roçar o servil, de um indigenato local que, pretendendo-se cosmopolita, hoje se percebe claramente que não enxergaria muito para além do que era moda em Paris. A fotografia abaixo de Jean-Paul Sartre em visita ao Ralis, unidade revolucionária por excelência, parece-me um dos momentos mais significativos do ambiente que rodeou o périplo do filósofo francês. Na companhia, entre outros, do capitão Quinhones (de óculos), um dos heróis, o-das-platinas-à-solta, do 11 de Março, Sartre segura numa G-3 com a falta de jeito demonstrativa de que as armas serão concretas demais para as suas abstracções. Para acompanhar tal foto, tanto pelo título como pela origem, pelo distanciamento nostálgico, a música apropriada será mesmo Brincadeiras Proibidas...
«KEEP CALM»
Quando é para acontecer, e se for para acontecer, acontece a todos, acontece nas melhores Democracias
29 março 2015
SOBRE A DOUTRINA DA DESRESPONSABILIZAÇÃO DE MARIA LUÍS
Confesso que passei algum tempo indeciso, sobre se havia ouvido apropriadamente a opinião da ministra das Finanças. Mais do que um disparate completo, com a intervenção a que acima se assiste naquela comissão parlamentar, ela estava a rasgar horizontes, a criar doutrina, uma de desresponsabilização da hierarquia pelos actos dos subordinados, da inimputabilidade do poder político, a do chefe-que-é-chefe-porque-está-desenhado-no-quadradinho-de-cima-do-organigrama. Talvez porque se tratasse de doutrina a novidade terá passado ao lado dos comentadores-de-fim-de-semana-do-costume-que-também-não-podem-estar-em-todas, até ver a minha perplexidade finalmente partilhada pelo editorial de ontem do Público (abaixo).
Diante disto pode sussurrar-se em surdina pelos bastidores do PSD que Maria Luís Albuquerque até poderá ser um asset promissor para o futuro do partido? Fazendo-a dizer coisas destas e ela sem perceber o que está a dizer? Ou percebendo, o que será ainda pior? Foda-se.
28 março 2015
O PROFETA
Cada vez que acontecem mais cenas destas, dá-me para recordar mais uma vez as profecias de Carlos Moedas feitas há precisamente quatro anos. Porque, de duas uma: ou Moedas só julgava que sabia do que estava a falar e não sabia, e aí já teve mais que tempo de manifestar o seu arrependimento pela sua ingenuidade; ou Moedas até sabia do que estava a falar e isso equipara-o na aldrabice a outros especialistas da entourage de Passos Coelho como Relvas ou Marco António. Seja como for, temos um comissário europeu que é o orgulho da pátria!
SIR RICHARD TURNBULL E A SUA EXPERIÊNCIA IEMENITA
Sir Richard Gordon Turnbull (1909-1998) era uma das últimas mãos experientes que saberia segurar com dignidade as rédeas de um império em decomposição. Estivera durante a década de 1950 no Quénia como Secretário-Chefe (o segundo posto da hierarquia administrativa colonial a seguir ao de Governador), precisamente durante a insurreição dos Mau-Mau, fora promovido em 1958 a Governador da vizinha Tanganica com a missão de preparar a sua independência, que veio a acontecer em Dezembro de 1961. Assumira o cargo de Governador-Geral do novo país, em representação da soberana Isabel II, até ele se ter transformado numa república em Dezembro de 1962. Quando, em Dezembro de 1964, o governo trabalhista britânico o escolheu para ser o Alto-Comissário em Áden, na complexa colónia britânica que viria a constituir primeiro o Iémen do Sul (1967), mais tarde fundida no Iémen (1990), fazia-se uma opção por alguém com experiência na região (Turnbull falava suaíli, o que não sendo o árabe local, é a língua franca da costa oriental de África, incluindo Omã) e na missão (o Reino Unido havia decidido conceder a independência à colónia com condições e um calendário a negociar com as elites locais). Em Maio de 1967, um Sir Richard abandonava o cargo depois de dois anos e meio de frustrantes negociações com as inúmeras partes envolvidas, de onde o problema menor seriam os interesses da antiga potência colonizadora. Em 1975, o mesmo Sir Richard Turnbull compilou numa extensa carta (que se transcreve condensada abaixo) as suas reflexões sobre os problemas insuperáveis com que se deparou. Têm a oportunidade de demonstrar quanta é a dificuldade de querer sintetizar sem simplificar um conflito iemenita típico.
O enquadramento constitucional dos Protectorados da Arábia do Sul era complicado para lá de qualquer explicação razoável: compreendia a Federação de estados do que havia sido o Protectorado de Áden Ocidental (assinalado no mapa acima a verde escuro), a própria cidade de Áden (que, pertencendo à Federação era uma Colónia da Coroa – assinalada a vermelho) e ainda os três estados pertencentes ao Protectorado de Áden Oriental (que não faziam parte da Federação e que não estavam federados uns com os outros – assinalado a verde claro). Os britânicos não administravam os estados e nunca o tinha feito; protegiam-nos, financiavam-nos, orientavam a sua política externa e, através de um sistema de conselheiros, tentava-se inculcar algumas noções de probidade e senso comum entre eles. Os estados da Federação quase não tinham receitas; não havia indústrias e muito pouca agricultura; nem os habitantes tinham muito para oferecer em termos de capacidades, a não ser a dos homens para o combate. Os estados estavam divididos por rivalidades e querelas de todo o género e cada um deles mostrava uma inveja rancorosa pelos seus vizinhos. Quase todos os homens andavam armados; não havia uma grande lealdade para com o estado de origem e não havia qualquer concepção dela para com a Federação.
Entre os Conservadores à direita, aduladores dos árabes no estilo clássico (Lawrence &al.) concebia-se os governantes dos estados como árabes tradicionais «sans peur et sans rapproche» (sic), em quem se podia confiar para manter um escudo de protecção à Base (a base aérea estratégica da RAF de Khormaksar, uma espécie de Lajes britânica nas Arábias)contra o nacionalismo árabe e as incursões vindas do Iémen. Pelo seu lado, os Trabalhistas no Governo estavam firmemente convencidos que todos eles não passavam de um punhado de canalhas que estariam a dificultar a marcha da Arábia do Sul na direcção do sufrágio universal e do sindicalismo para todos. Os que estavam no terreno sabiam que, com algumas excepções, o conjunto era um bando de egoístas inúteis que se haviam alcandorado a posições que não tinham sequer competência para ocupar.
Entre os Conservadores à direita, aduladores dos árabes no estilo clássico (Lawrence &al.) concebia-se os governantes dos estados como árabes tradicionais «sans peur et sans rapproche» (sic), em quem se podia confiar para manter um escudo de protecção à Base (a base aérea estratégica da RAF de Khormaksar, uma espécie de Lajes britânica nas Arábias)contra o nacionalismo árabe e as incursões vindas do Iémen. Pelo seu lado, os Trabalhistas no Governo estavam firmemente convencidos que todos eles não passavam de um punhado de canalhas que estariam a dificultar a marcha da Arábia do Sul na direcção do sufrágio universal e do sindicalismo para todos. Os que estavam no terreno sabiam que, com algumas excepções, o conjunto era um bando de egoístas inúteis que se haviam alcandorado a posições que não tinham sequer competência para ocupar.
Quanto à Federação (da Arábia do Sul), era uma criação política que nascera desengonçada, afectada por dissensões internas e que não gerava confiança em nenhum dos agentes envolvidos. Os próprios federalistas haviam acabado por tomar consciência que, por terem aderido ao projecto britânico, se haviam tornado nuns desprezados no mundo árabe. Haviam por isso decidido agarrar-se às vantagens que haviam obtido da relação com a potência colonial, ou seja, o dinheiro britânico e a sua protecção pelo maior espaço de tempo que lhes fosse possível. O que causava mais admiração nos federalistas é que, apesar da precaridade da sua posição, politicamente, socialmente e constitucionalmente, não só não se dispunham a fazer fosse o que fosse para melhorar a sua situação política, como também não toleravam que alguém de fora o fizesse por eles. Estavam divididos por querelas e disputas e por intermináveis rivalidades pessoais; foi por esse motivo que teve que se estabelecer que a presidência do Conselho Supremo Federal fosse rotativa mensalmente.
Em contraste, os adenitas mostravam-se orgulhosos das suas origens e ciosos das suas instituições democráticas, que se mostravam verdadeiramente muito mais evoluídas que em qualquer dos outros países do Médio Oriente. Concebiam-se como verdadeiramente civilizados (que o eram) e não se mostravam nada dispostos a partilhar a sua riqueza com os atrasados, conflituosos e arrogantes tribais que compunham o resto da Federação. De algum modo, o governo conservador britânico havia-os arrebanhado em 1963 para se juntarem a ela. Nunca perdoarão os britânicos por isso.
É necessário salientar que embora os adenitas fossem, admita-se, merecedores de simpatia e apoio e os federalistas mais apropriados à condenação como baronetes medievais perversos, na realidade foram os últimos a adquirir as maiores simpatias em vez dos primeiros. É que os federalistas, apesar de todos os seus defeitos, eram a bravura, a simpatia e o charme enquanto os adenitas podiam ser reduzidos nesse contexto a um grupo de merceeiros. Era uma reedição da história do nobre de província versus o negociante citadino.
Finalmente, os estados do Protectorado de Áden Oriental não tinham muito interesse para a composição do conjunto; há uma aura tão romântica a rodear o Wadi Hadhramaut (...) os estados haviam-se desenvolvido adoptando linhas toleravelmente pacíficas; os jovens abraçavam uma carreira mercantil em vez das pilhagens e das contra-pilhagens (...) os velhos eram simpáticos, elegantes e cultos mas cultivando também uma indiferença e um derrotismo tais que não se dispunham a fazer nada por si próprios nem a aceitar que qualquer auxílio lhes fosse prestado. Uma unidade comandada e financiada pelos britânicos, a Legião Beduína Hadhrami, ajudava a assegurar a paz entre as várias facções rivais. Como resultado parcial do seu isolamento, as instituições locais, tanto quanto o carácter das gentes desagregava-se (...) a única atitude positiva que eles manifestavam eram manterem-se afastados dos problemas do mundo árabe e procurar ter o menor contacto possível com a Federação (...) apesar de tudo o que possa ter sido dito a respeito da qualidade quase ideal do Protectorado de Áden Oriental, nos meados da década de sessenta a estrutura social já começara a colapsar; em 1966, a Legião, que fora considerada até aí uma “força politicamente não comprometia”, assassinou o seu comandante (britânico) e, à medida que o tempo dos britânicos chegava ao fim, as cidades do Wadi Hadhramaut viram-se ameaçadas por grupos terroristas rivais...
A FLOSY (Frente de Libertação do Iémen do Sul Ocupado) era essencialmente uma organização urbana e não tinha muita influência fora de Áden; mostrava o requinte de associar os seus atentados bombistas e assassinatos a referências ao sindicalismo e à democracia... A FLN (Frente de Libertação Nacional) era muito diferente (...) era gente rural transplantada para a cidade (...) a sua arma secreta é que aquilo que faziam lhes surgia naturalmente (...) tinham estado a combater a autoridade e entre si desde os tempos que precediam a islamização; à bruta, acabaram por dominar os maiores sindicatos (...) Do lado britânico, tão habituados se estava aos permanentes conflitos internos entre árabes, que se demorou tempo demasiado a perceber que havia possibilidade dos diferentes grupos estaduais dentro do FLN pudessem cooperar entre si; por essa altura já os efectivos do exército e da guarda da Federação estavam completamente infiltrados.
Nos princípios de 1965 havia-se montado um palco para a realização de uma grande conferência da Arábia do Sul, reformando a constituição federal, entregando-se a soberania britânica em Áden para que a cidade se pudesse juntar ao resto da Federação, e concedendo-se a independência ao conjunto, como um estado unificado numa relação privilegiada com a metrópole britânica, a ter lugar por volta de 1968 (...) os adenitas não gostaram da ideia; o que desejavam era a independência total e juntar-se a uma Federação reformada na altura e condições por si escolhidas; os federalistas também não gostaram da ideia; não gostavam de enfrentar o mundo moderno; queriam continuar a viver o seu tradicional modo de vida feudal à conta dos contribuintes britânicos. Os federalistas sabotaram a conferência e ela teve que ser abandonada.
Entretanto, uma comissão de constitucionalistas estudavam as possibilidades para Áden e a Federação (...) o próprio governo de Áden interveio no processo considerando dois dos membros da comissão como imigrantes ilegais (...) meses mais tarde, lá se conseguiu organizar uma espécie de conferência, mas a acrimónia entre Áden e a Federação era tal que houve que a encerrar (...) o Governo de Sua Majestade viu-se compelido a suspender a constituição; o Alto-Comissário (o próprio Sir Richard Turnbull), desgraçado, tornou-se o governo de Áden (...) manifestações, greves e outras manifestações de desobediência tornaram-se comuns: Áden passou a boicotar o parlamento federal e os seus ex-ministros passaram a liderar uma campanha contra a comissão constitucional; eles não aceitariam menos do que a destruição do sistema tribal e a demissão dos dirigentes tribais.
A preocupação principal dos britânicos era, mais do que os dirigentes, a segurança colectiva da região. O exército e a guarda federais, apesar da infiltração da FLN, estavam dependentes das lealdades tribais nas suas internas e a desintegração de uma estrutura como o governo federal deixaria aquela máquina militar completamente por conta própria.
Em Fevereiro de 1966, o Governo de Sua Majestade anunciou a sua intenção de abandonar a Base e a Arábia do Sul. O governo federal reagiu mal (...) os dirigentes dos estados recordaram os britânicos que a sua anuência aos seus planos os haviam tornado alvos no mundo árabe; que depois de lhes ter retirado qualquer possibilidade de encontrar outros pólos de amizade e apoio (...) agora se propunham abandoná-los. Mantinham, com uns laivos de verdade, que na conferência que tivera lugar em Julho de 1964 o Reino Unido havia dado promessas concretas que um Acordo de Defesa para o período pós-independência seria negociado, acordo esse sob o qual se comprometera a manter a Base em Áden «para defesa da Federação e cumprimento das suas responsabilidades à escala mundial». A contra-argumentação era inútil, mesmo contraproducente; os federalistas insistiam que a Federação fora uma criação britânica e que também deviam ser eles a cuidar dela (...) em conversas privadas, adenitas responsáveis confessavam que assim como a Federação necessitava da Base para os defender, também Áden precisava da Base como salvaguarda pelas temidas depredações dos governantes federalistas. Consequentemente, o firme anúncio da intenção britânica fez com que a situação político-militar se agravasse ainda mais. Já não havia quaisquer vantagens em apoiar as iniciativas dos britânicos (...) a única certeza era que o futuro governo já não seria britânico; portanto toda a gente – militares, polícias, funcionários e políticos locais teriam que se bandear para outras paragens. Os de Londres estavam convencidos que bastaria a ameaça de tornar Áden independente que isso permitiria às autoridades coloniais chegar a acordo com as partes e sanar as divergências (...) mas não podiam estar mais enganados.
A única potência que se poderia conceber a apoiar a Federação seria a Arábia Saudita; o rei Faiçal recusou-se a agir a não ser que a Federação e os estados do Protectorado do Iémen Oriental se concertassem numa frente comum. Estes últimos, sem uma garantia prévia de uma aproximação entre a Federação e Áden não contemplariam sequer a hipótese de uma aliança, quanto mais a ideia de aderirem à Federação; e Áden preferiria tornar-se numa espécie de estado vassalo do Egipto a reassumir a posição na Federação que em 1963 fora obrigada pelos britânicos a assumir. Quanto à Federação propriamente dita, não se mostrava disposta a fazer fosse o que fosse para se mostrar mais aceitável aos olhos do mundo árabe; nem se disporia a qualquer tentativa para conciliar as aspirações adenitas.
Na procura de uma constituição que se mostrasse apropriada às circunstâncias, examinaram-se quase todas as constituições dos países Árabes, num exercício inútil considerando que as pretensas «democracias» árabes não passavam, todas e na prática, de ditaduras militares. Os britânicos tentaram até aliciar a ONU e acordaram em aceitar uma missão encarregada de recomendar medidas práticas conducentes à criação de um governo de gestão para tomar conta dos problemas até se elaborar e adoptar uma constituição. Todavia, por essa altura, os adenitas haviam inflectido tanto na adopção das directivas egípcias, tão condicionados estavam pela intimidação dos terroristas que lhes era impossível cooperar com os britânicos; mostravam uma desconfiança patológica dos federalistas. Estes, por sua vez, entretinham-se com a realização de uma série de conferências fúteis distribuídas por locais climatologicamente mais amenos do Médio Oriente. Whitehall (i.e., o Governo em Londres) andava por essa mesma época obcecado com doutrina ideológica a respeito da importância das eleições, que eles imaginavam que se poderiam realizar em Áden como em qualquer outro círculo eleitoral britânico, Putney ou Hampstead. Na Federação, todos os homens andavam armados e os conflitos tribais eram endémicos. Em Áden, até a oposição não conseguia chegar a acordo quanto aos critérios para se ser eleitor; aliás, a própria menção do assunto era passível de desncadear um conjunto de distúrbios urbanos. Como magistrados e jurados eram abertamente sujeitos a intimidação, tornava-se necessário manter os terroristas capturados em detenção porque não podiam ser julgados. Era uma situação muito difícil que só expôs os britânicos ao opróbrio.
Em Março de 1967 (numa manobra evidente para despachar o assunto, tornando-o menos penoso) Whitehall avançou com a ideia de antecipar a independência em dois ou três meses, chamando os nacionalistas adenitas para um território neutral onde se poderia encontrar um «modus vivendi», com protecção britânica para os meses que se seguissem. George Thompson (ministro do governo londrino) esmerou-se com os seus melhores dotes persuasivos para convencer a Federação, mas eles declinaram e rechaçaram a ideia.
Quando a missão da ONU chegou a Áden, ela era composta pelos elementos mais raivosamente anti-britânicos da ONU e via-se que só tinham vindo à Arábia do Sul para arranjar sarilhos. Mostraram-se conflituosos, nada cooperantes e antipáticos. Recusaram reconhecer ao governo da Federação qualquer estatuto; recusaram-se a reunir-se com os seus ministros. Os adenitas por sua vez também se recusaram a encontrar-se com a missão ou a apresentar-lhes sequer qualquer documentação solicitada. A FLN convocou uma greve e o governo da Federação recusou-se a conceder-lhes tempo de antena radiofónico. No dia seguinte foram-se embora, irritadíssimos.
Embora tenha vindo a criticar muito severamente os Árabes, não creio que se possa negar que as maiores responsabilidades pela «débacle» da Arábia do Sul são do governo britânico. Criou-se uma Federação composta por estados paupérrimos (não há petróleo na Arábia do Sul) que eram governados por verdadeiros irresponsáveis; por os ter feito aderir a uma solução vinda do exterior, denegrimo-los aos olhos dos outros países árabes. O interesse dos britânicos era aproveitar as suas qualidades guerreiras como barreira protectora da Base. Quanto a Áden, tratava-se afinal de uma colónia britânica e os adenitas eram súbditos britânicos para quem se tinha muito mais responsabilidades do que se teria para com os outros membros da Federação. Forçou-se Áden a pertencer à Federação numa parte por causa da Base, noutra parte para se poder utilizar a riqueza que o seu porto gerava na manutenção de um governo federal de estados que nunca tiveram outras fontes de financiamento que não tivessem sido os contribuintes britânicos.
Tudo isso piorou com a explosão do nacionalismo árabe na década de 1960 e pela determinação de Nasser (presidente egípcio) em vingar-se do que acontecera no Suez. A ironia é que, no final, foi a FLN e não os homens de Nasser que venceram.
Um último comentário. Mesmo sem o nacionalismo árabe e sem Nasser, não acredito que se pudesse ter construído uma parceria natural e proveitosa entre os adenitas e os federalistas; e sem essa parceria os três estados do Protectorado Oriental ter-se-iam mantido distanciados de qualquer solução política que os quisesse incluir.
Em contraste, os adenitas mostravam-se orgulhosos das suas origens e ciosos das suas instituições democráticas, que se mostravam verdadeiramente muito mais evoluídas que em qualquer dos outros países do Médio Oriente. Concebiam-se como verdadeiramente civilizados (que o eram) e não se mostravam nada dispostos a partilhar a sua riqueza com os atrasados, conflituosos e arrogantes tribais que compunham o resto da Federação. De algum modo, o governo conservador britânico havia-os arrebanhado em 1963 para se juntarem a ela. Nunca perdoarão os britânicos por isso.
É necessário salientar que embora os adenitas fossem, admita-se, merecedores de simpatia e apoio e os federalistas mais apropriados à condenação como baronetes medievais perversos, na realidade foram os últimos a adquirir as maiores simpatias em vez dos primeiros. É que os federalistas, apesar de todos os seus defeitos, eram a bravura, a simpatia e o charme enquanto os adenitas podiam ser reduzidos nesse contexto a um grupo de merceeiros. Era uma reedição da história do nobre de província versus o negociante citadino.
Finalmente, os estados do Protectorado de Áden Oriental não tinham muito interesse para a composição do conjunto; há uma aura tão romântica a rodear o Wadi Hadhramaut (...) os estados haviam-se desenvolvido adoptando linhas toleravelmente pacíficas; os jovens abraçavam uma carreira mercantil em vez das pilhagens e das contra-pilhagens (...) os velhos eram simpáticos, elegantes e cultos mas cultivando também uma indiferença e um derrotismo tais que não se dispunham a fazer nada por si próprios nem a aceitar que qualquer auxílio lhes fosse prestado. Uma unidade comandada e financiada pelos britânicos, a Legião Beduína Hadhrami, ajudava a assegurar a paz entre as várias facções rivais. Como resultado parcial do seu isolamento, as instituições locais, tanto quanto o carácter das gentes desagregava-se (...) a única atitude positiva que eles manifestavam eram manterem-se afastados dos problemas do mundo árabe e procurar ter o menor contacto possível com a Federação (...) apesar de tudo o que possa ter sido dito a respeito da qualidade quase ideal do Protectorado de Áden Oriental, nos meados da década de sessenta a estrutura social já começara a colapsar; em 1966, a Legião, que fora considerada até aí uma “força politicamente não comprometia”, assassinou o seu comandante (britânico) e, à medida que o tempo dos britânicos chegava ao fim, as cidades do Wadi Hadhramaut viram-se ameaçadas por grupos terroristas rivais...
A FLOSY (Frente de Libertação do Iémen do Sul Ocupado) era essencialmente uma organização urbana e não tinha muita influência fora de Áden; mostrava o requinte de associar os seus atentados bombistas e assassinatos a referências ao sindicalismo e à democracia... A FLN (Frente de Libertação Nacional) era muito diferente (...) era gente rural transplantada para a cidade (...) a sua arma secreta é que aquilo que faziam lhes surgia naturalmente (...) tinham estado a combater a autoridade e entre si desde os tempos que precediam a islamização; à bruta, acabaram por dominar os maiores sindicatos (...) Do lado britânico, tão habituados se estava aos permanentes conflitos internos entre árabes, que se demorou tempo demasiado a perceber que havia possibilidade dos diferentes grupos estaduais dentro do FLN pudessem cooperar entre si; por essa altura já os efectivos do exército e da guarda da Federação estavam completamente infiltrados.
Nos princípios de 1965 havia-se montado um palco para a realização de uma grande conferência da Arábia do Sul, reformando a constituição federal, entregando-se a soberania britânica em Áden para que a cidade se pudesse juntar ao resto da Federação, e concedendo-se a independência ao conjunto, como um estado unificado numa relação privilegiada com a metrópole britânica, a ter lugar por volta de 1968 (...) os adenitas não gostaram da ideia; o que desejavam era a independência total e juntar-se a uma Federação reformada na altura e condições por si escolhidas; os federalistas também não gostaram da ideia; não gostavam de enfrentar o mundo moderno; queriam continuar a viver o seu tradicional modo de vida feudal à conta dos contribuintes britânicos. Os federalistas sabotaram a conferência e ela teve que ser abandonada.
Entretanto, uma comissão de constitucionalistas estudavam as possibilidades para Áden e a Federação (...) o próprio governo de Áden interveio no processo considerando dois dos membros da comissão como imigrantes ilegais (...) meses mais tarde, lá se conseguiu organizar uma espécie de conferência, mas a acrimónia entre Áden e a Federação era tal que houve que a encerrar (...) o Governo de Sua Majestade viu-se compelido a suspender a constituição; o Alto-Comissário (o próprio Sir Richard Turnbull), desgraçado, tornou-se o governo de Áden (...) manifestações, greves e outras manifestações de desobediência tornaram-se comuns: Áden passou a boicotar o parlamento federal e os seus ex-ministros passaram a liderar uma campanha contra a comissão constitucional; eles não aceitariam menos do que a destruição do sistema tribal e a demissão dos dirigentes tribais.
A preocupação principal dos britânicos era, mais do que os dirigentes, a segurança colectiva da região. O exército e a guarda federais, apesar da infiltração da FLN, estavam dependentes das lealdades tribais nas suas internas e a desintegração de uma estrutura como o governo federal deixaria aquela máquina militar completamente por conta própria.
Em Fevereiro de 1966, o Governo de Sua Majestade anunciou a sua intenção de abandonar a Base e a Arábia do Sul. O governo federal reagiu mal (...) os dirigentes dos estados recordaram os britânicos que a sua anuência aos seus planos os haviam tornado alvos no mundo árabe; que depois de lhes ter retirado qualquer possibilidade de encontrar outros pólos de amizade e apoio (...) agora se propunham abandoná-los. Mantinham, com uns laivos de verdade, que na conferência que tivera lugar em Julho de 1964 o Reino Unido havia dado promessas concretas que um Acordo de Defesa para o período pós-independência seria negociado, acordo esse sob o qual se comprometera a manter a Base em Áden «para defesa da Federação e cumprimento das suas responsabilidades à escala mundial». A contra-argumentação era inútil, mesmo contraproducente; os federalistas insistiam que a Federação fora uma criação britânica e que também deviam ser eles a cuidar dela (...) em conversas privadas, adenitas responsáveis confessavam que assim como a Federação necessitava da Base para os defender, também Áden precisava da Base como salvaguarda pelas temidas depredações dos governantes federalistas. Consequentemente, o firme anúncio da intenção britânica fez com que a situação político-militar se agravasse ainda mais. Já não havia quaisquer vantagens em apoiar as iniciativas dos britânicos (...) a única certeza era que o futuro governo já não seria britânico; portanto toda a gente – militares, polícias, funcionários e políticos locais teriam que se bandear para outras paragens. Os de Londres estavam convencidos que bastaria a ameaça de tornar Áden independente que isso permitiria às autoridades coloniais chegar a acordo com as partes e sanar as divergências (...) mas não podiam estar mais enganados.
A única potência que se poderia conceber a apoiar a Federação seria a Arábia Saudita; o rei Faiçal recusou-se a agir a não ser que a Federação e os estados do Protectorado do Iémen Oriental se concertassem numa frente comum. Estes últimos, sem uma garantia prévia de uma aproximação entre a Federação e Áden não contemplariam sequer a hipótese de uma aliança, quanto mais a ideia de aderirem à Federação; e Áden preferiria tornar-se numa espécie de estado vassalo do Egipto a reassumir a posição na Federação que em 1963 fora obrigada pelos britânicos a assumir. Quanto à Federação propriamente dita, não se mostrava disposta a fazer fosse o que fosse para se mostrar mais aceitável aos olhos do mundo árabe; nem se disporia a qualquer tentativa para conciliar as aspirações adenitas.
Na procura de uma constituição que se mostrasse apropriada às circunstâncias, examinaram-se quase todas as constituições dos países Árabes, num exercício inútil considerando que as pretensas «democracias» árabes não passavam, todas e na prática, de ditaduras militares. Os britânicos tentaram até aliciar a ONU e acordaram em aceitar uma missão encarregada de recomendar medidas práticas conducentes à criação de um governo de gestão para tomar conta dos problemas até se elaborar e adoptar uma constituição. Todavia, por essa altura, os adenitas haviam inflectido tanto na adopção das directivas egípcias, tão condicionados estavam pela intimidação dos terroristas que lhes era impossível cooperar com os britânicos; mostravam uma desconfiança patológica dos federalistas. Estes, por sua vez, entretinham-se com a realização de uma série de conferências fúteis distribuídas por locais climatologicamente mais amenos do Médio Oriente. Whitehall (i.e., o Governo em Londres) andava por essa mesma época obcecado com doutrina ideológica a respeito da importância das eleições, que eles imaginavam que se poderiam realizar em Áden como em qualquer outro círculo eleitoral britânico, Putney ou Hampstead. Na Federação, todos os homens andavam armados e os conflitos tribais eram endémicos. Em Áden, até a oposição não conseguia chegar a acordo quanto aos critérios para se ser eleitor; aliás, a própria menção do assunto era passível de desncadear um conjunto de distúrbios urbanos. Como magistrados e jurados eram abertamente sujeitos a intimidação, tornava-se necessário manter os terroristas capturados em detenção porque não podiam ser julgados. Era uma situação muito difícil que só expôs os britânicos ao opróbrio.
Em Março de 1967 (numa manobra evidente para despachar o assunto, tornando-o menos penoso) Whitehall avançou com a ideia de antecipar a independência em dois ou três meses, chamando os nacionalistas adenitas para um território neutral onde se poderia encontrar um «modus vivendi», com protecção britânica para os meses que se seguissem. George Thompson (ministro do governo londrino) esmerou-se com os seus melhores dotes persuasivos para convencer a Federação, mas eles declinaram e rechaçaram a ideia.
Quando a missão da ONU chegou a Áden, ela era composta pelos elementos mais raivosamente anti-britânicos da ONU e via-se que só tinham vindo à Arábia do Sul para arranjar sarilhos. Mostraram-se conflituosos, nada cooperantes e antipáticos. Recusaram reconhecer ao governo da Federação qualquer estatuto; recusaram-se a reunir-se com os seus ministros. Os adenitas por sua vez também se recusaram a encontrar-se com a missão ou a apresentar-lhes sequer qualquer documentação solicitada. A FLN convocou uma greve e o governo da Federação recusou-se a conceder-lhes tempo de antena radiofónico. No dia seguinte foram-se embora, irritadíssimos.
Embora tenha vindo a criticar muito severamente os Árabes, não creio que se possa negar que as maiores responsabilidades pela «débacle» da Arábia do Sul são do governo britânico. Criou-se uma Federação composta por estados paupérrimos (não há petróleo na Arábia do Sul) que eram governados por verdadeiros irresponsáveis; por os ter feito aderir a uma solução vinda do exterior, denegrimo-los aos olhos dos outros países árabes. O interesse dos britânicos era aproveitar as suas qualidades guerreiras como barreira protectora da Base. Quanto a Áden, tratava-se afinal de uma colónia britânica e os adenitas eram súbditos britânicos para quem se tinha muito mais responsabilidades do que se teria para com os outros membros da Federação. Forçou-se Áden a pertencer à Federação numa parte por causa da Base, noutra parte para se poder utilizar a riqueza que o seu porto gerava na manutenção de um governo federal de estados que nunca tiveram outras fontes de financiamento que não tivessem sido os contribuintes britânicos.
Tudo isso piorou com a explosão do nacionalismo árabe na década de 1960 e pela determinação de Nasser (presidente egípcio) em vingar-se do que acontecera no Suez. A ironia é que, no final, foi a FLN e não os homens de Nasser que venceram.
Um último comentário. Mesmo sem o nacionalismo árabe e sem Nasser, não acredito que se pudesse ter construído uma parceria natural e proveitosa entre os adenitas e os federalistas; e sem essa parceria os três estados do Protectorado Oriental ter-se-iam mantido distanciados de qualquer solução política que os quisesse incluir.
Com toda a frustração que as suas últimas palavras acima fazem sentir, Sir Richard Turnbull deixou o cargo de Alto-Comissário em 22 de Maio de 1967. Sucedeu-lhe Sir Humphrey Trevelyan (1905-1985) que esteve por lá seis meses na missão ingrata de apagar a luz e fechar a porta sem se saber muito bem nem quando o irá fazer nem a quem se vai deixar a chave. A data escolhida acabou por ser 29 de Novembro de 1967 e o curto vídeo acima, apesar da magnificência da locução, mostra – para quem o consiga descodificar – a vergonha embaraçada de toda a cerimónia. Ninguém queria morrer por uma causa inexistente. Vê-se as últimas malas dos soldados expedicionários a serem transportadas de helicóptero para os navios sem se explicar que os britânicos já não controlavam as próprias instalações portuárias em Áden e tinham receio de as carregar para bordo da forma tradicional; também por incapacidade em assegurar um perímetro seguro em terra a última guarda de honra ao Alto-Comissário com o simbólico arriar da bandeira teve lugar ao largo, a bordo de um navio, o HMS Intrepid. Uma verdade inconveniente que os 25 navios deslocados para o resgate e a parada de aviões não consegue escamotear. Os britânicos saíram do Iémen do Sul com o rabo entre as pernas. Os sauditas já por lá andavam, embora do outro lado da fronteira, no outro Iémen. Vamos a ver o que lhes acontece desta vez..
26 março 2015
O IÉMEN, ESSE PAíS (DES)CONHECIDO DE TODOS NÓS
As peças noticiosas que vemos sobre a crise iemenita (vejam-se estes dois vídeos da euronews) são um exemplo acabado do que é o jornalismo medíocre. Ajunta-se uma narrativa desgarrada e inconsequente para que a locução acompanhe as imagens mas onde não há quaisquer explicações adicionais sobre os locais (como é que se chama a capital do Iémen?), os protagonistas (como é que se chama o seu presidente?) ou as intenções (como é que se chamam e que pretendem as tais milícias xiitas?) do conflito e o resultado é esta vergonha de se assistir. Mas o que parece importante é que a notícia nos faça distinguir os bons dos maus.
Fiquemos a saber que os sauditas, à frente de uma coligação (depois do Iraque já se sabe que uma coligação confere um carácter automático de bondade às intervenção externas...), vão para o Iémen salvar os bons dos maus. Não percebendo quase nada do que se está a passar naquele país, perceberei o suficiente para perceber que quem me quer explicar ainda perceberá menos que eu. Recorrendo aos arquivos deste blogue, permitam-me recordar as várias guerras cruzadas que dilaceraram aquele país de 1962 a 1970, o que me faz acolher as notícias da intervenção saudita – porque repetida... – e os seus resultados com imensa circunspecção...
A «SÔ PESSOURA»
O autor da foto é Frank Horvat e o contraste entre os figurantes é tal que se legitima a dúvida se a fotografia será genuína, exibindo-se uma pobre professora coquette que fora desterrada na abertura das aulas (note-se a data a giz no quadro) para um rincão esquecido de França ou se, pelo contrário, a fotografia terá sido encenada, com uma modelo a fazer-se passar por Sô Pessoura no meio de alunas de classe social inferior à sua. Em qualquer dos casos, a fotografia faz um contraste interessantíssimo com um dos mais conhecidos quadros de Norman Rockwell a que já aqui me referira.
Na realidade, a segurança da professora de cima é forjada, a foto foi posada, um trabalho de moda encomendado pela revista Elle a Horvat em 1960, em que este resolveu realçar o contraste entre duas Franças, a da sofisticação urbana representada pela modelo comparada com o resto, como as alunas desengraçadas da foto supra, ou ainda os velhos, os gendarmes e o jerico das fotos abaixo, recolhidos naturalmente dos meios típicos de um Auvergne então bastante rústico, não muito distinto dos meios rurais de onde iriam partir, na década que começava, os emigrantes portugueses para França.
MORGADINHA DOS CANIBAIS
Só há que agradecer a quem teve a magnífica ideia (e trabalho) de juntar lado a lado estas duas interpretações televisivas da Morgadinha dos Canibais pela Banda do Casaco e colocá-las no You Tube. O intervalo de tempo que as separa, os dez anos que medeiam entre 1976 a 1986 são um factor adicional de interesse. Há ali dois Portugais muito diferentes que se percebem num contraste que vai muito para além das emissões (e os programas) serem originalmente a preto e branco para depois passarem a ser a cores. É o Portugal que procurava assentar com Mário Soares mas ainda com pretensões criativas herdadas da ressaca do PREC de 1976 versus o Portugal que se aprende a comportar com Cavaco Silva mais a recente adesão à CEE em 1986. O primeiro vídeo querer-se-ia imaginativo e começa aliás pelo aparecimento de António Avelar de Pinho numa cena claramente inspirada numa das aberturas clássicas dos Monty Phyton (It’s...)...
...enquanto o segundo se quer competente (o facto da actuação ser em estúdio, da formação da Banda ter entretanto mudado substancialmente e da audiência do programa ser diferente também não ajudaria a outra coisa) e termina com uma conversa convencional entre Nuno Rodrigues e o anfitrião do programa, Carlos Cruz. Na ocasião, o autor explica que o título da canção era um trocadilho, sem desenvolver. Não sei se à época a explicação terá bastado. Mas sei que hoje, em que há um outro despudor em exibir a ignorância em televisão, seria assumidamente insuficiente.
25 março 2015
SOBRE A «VEEMENTE» DEGRADAÇÃO D(O)S LARANJAS
Realce-se para intróito como a notícia está gramaticalmente mal redigida: o regresso de Carlos Moedas não pode ser veemente, quanto muito seria o seu descarte que o seria, e aí sê-lo-ia feito veementemente. Mas o pior é que, esqueça-se a veemência, a notícia é falsa: não se põe o problema de Carlos Moedas regressar a algo de que não anda afastado porque é inerente às funções que ocupa: comissário europeu é um cargo de confiança política e ele foi escolhido por Passos Coelho para o ocupar por causa disso mesmo. Tanto abusou o actual presidente da República deste truque do político apolítico que ele agora se apresenta imprestável para consumo...
ZWI MIGDAL
Todos conhecem o significado da palavra Máfia. Os mais atentos conseguem até distinguir a especificidade geográfica da Máfia (siciliana) da Camorra (napolitana) e da Ndrangheta (calabresa). Ou saber ainda que esse género de organizações se designa por Tríades na China ou Yakuza no Japão. Que o tráfico de cocaína conferiu poder e notoriedade às suas homólogas latino-americanas designadas por Cartéis: da Colômbia, do México, etc. E finalmente que a queda do Muro de Berlim integrou no universo mediático das máfias conhecidas as da Europa de Leste: da Rússia, da Geórgia, etc. Contudo, estou quase tentado a apostar que quem me seguiu até aqui concordando aprovadoramente e com conhecimento nunca terá ouvido falar da Zwi Migdal...
De que se trata? De uma organização formada predominantemente por judeus polacos e russos na segunda metade do Século XIX (ambos eram então súbditos do tsar) que, sobre uma designação respeitável (Sociedade Judaica de Auxílio Mútuo), promovia o chamado tráfico de brancas (prostitutas) da Europa de Leste para a América. Mais do que os Estados Unidos, a região onde o negócio se veio a revelar mais rentável foi a Argentina, o Uruguai e o Sul do Brasil, regiões onde a chegada mais recente da imigração europeia provocara, nos anos próximos da transição do Século XIX para o Século XX, um desequilíbrio acentuado entre os sexos (em 1895 havia na Argentina 1,7 homens para cada mulher!), o que fazia o negócio gerar lucros fabulosos. Estima-se que no seu apogeu, por volta de meados da década de 1920, os membros da Zwi Migdal (meia centena) terão chegado a controlar, só na Argentina, uns 2.000 bordéis e 30.000 prostitutas, a esmagadora maioria das quais havia vindo da Europa, porque mais adaptadas ao gosto da clientela. Representariam sensivelmente metade do mercado total da prostituição argentina. Penso ser dispensável explicar como se desenrolavam as operações desde a contratação na aldeia remota da Europa até à instalação no bordel, assim como é evidente que, para que tal empório existisse, ele tinha que contar com a cumplicidade das autoridades. No Brasil as operações da Zwi Migdal, embora precoces (os primeiros registos datam de 1872, ainda do período imperial) foram mais localizadas (no Norte e Nordeste as prostitutas judias sofriam a concorrência da mão de obra local), embora elas ainda hoje possam ser notadas no vocabulário do português sul-americano: há a palavra cafetão como sinónimo de proxeneta, por analogia com os prósperos kaftans tipicamente russos envergados pelos encarregados dos estabelecimentos; ou então a desqualificação que no Brasil sofreu o qualificativo polaco ou polaca (por sinónimo de prostituta), substituído por polonês ou polonesa, ao contrário do que acontece no português europeu.
Apesar de progressivamente mais perseguido pelas autoridades do Novo Mundo (acima, notícias de um jornal argentino de 1930 anunciando a prisão de 108 membros da organização), a Zwi Migdal prosseguiu as suas actividades até ao começo da Segunda Guerra Mundial. Mas, mais do que a Guerra, foi o Holocausto que exterminou o campo de recrutamento dos operacionais da Zwi Migdal. Factores adicionais posteriores – como o estabelecimento da Cortina de Ferro ou a fundação de Israel – conjugaram-se para pôr fim a esta conotação fortíssima entre esta máfia judaica e a prostituição. Porque o assunto das máfias sempre desperta os seus entusiasmos, é no mínimo curioso apercebermo-nos de como a Zwi Migdal se pode ter tornado hoje tão pouco recordado. Mas creio que será compreensível, tal a persistência da imagem da vitimização dos judeus de 1945 para cá. Publicar títulos em que se podem ler expressões como a Mafia Judia (abaixo) é correr sérios riscos de acusações de anti-semitismo.
24 março 2015
POR FAVOR, NÃO DÊEM (MAIS) IDEIAS À AUTORIDADE TRIBUTÁRIA
Há notícias que, mais do que insólitas, são perigosas se publicadas em Portugal nos dias que correm. Esta acima, oriunda da BBC Brasil, faz-nos correr o risco imediato que a nossa estimada Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA), imparável na sua autogestão incontrolável de que recentemente mais uma vez deu mostras com o episódio da Lista VIP, ainda se lembre de nos cobrar um pagamento especial por conta das nanopepitas de ouro que todos inadvertidamente andamos a cagar cada vez que vamos à sanita... Depois de termos vivido acima das nossas possibilidades ainda se descobre que andaremos a cagar abaixo dessas possibilidades. Atenta, a ATA cobrar-nos-ia o quinto, um famoso imposto histórico sobre a extracção aurífera que encheu os cofres de monarcas como D. João V (1706-1750), mas neste caso, como o pagamento é por conta (ou seja, antecipado), teremos que ser nós a esforçarmo-nos, de piaçá na mão, por recuperar, a jusante da canalização, a riqueza que nem imaginávamos possuir dentro de nós...
A PROPÓSITO DA CANDIDATURA DE HENRIQUE NETO
Se se retiraram alguns ensinamentos das últimas eleições presidenciais de Janeiro de 2011, eles terão vindo das candidaturas que obtiveram os dois piores resultados: da candidatura cívica mas negativa de Defensor de Moura, que passou o tempo a pretender demonstrar-nos quanto Cavaco Silva era uma pessoa muito pouco recomendável (e, infelizmente, o tempo está a dar-lhe cada vez mais razão...); e da candidatura incívica e também disparatada de José Manuel Coelho, que conseguiu demonstrar quanto a comunicação social pode estar mais interessada em palhaçadas do que em assuntos sérios: no final do escrutínio (acima) a votação alcançada por Coelho foi idêntica aos votos em branco (aproximadamente 190.000 votos), mas as atenções mediáticas concentraram-se muito mais no seu estilo apalhaçado do que em procurar perceber as razões de um número equivalente de eleitores que, indo votar, preferiu não manifestar qualquer preferência por qualquer dos seis candidatos à escolha. Isto não esquecendo ainda o que poderia ser comentado sobre aquele milhão de eleitores que costuma comparecer nos actos eleitorais e que dessa vez decidiu não o fazer¹.
Perdoe-se-me a extensão do preâmbulo mas ele parece-me indispensável para explicar o que possa ter a dizer quanto à apresentação da candidatura presidencial de Henrique Neto. É uma candidatura que me faz lembrar as reacções despertadas pelo PPM histórico dos tempos de Gonçalo Ribeiro Teles: havia uma grande onda de simpatia pela formação mas não era por isso que ela recolhia votações significativas. Também aqui se suspeita que a simpatia que rodeia a iniciativa deste candidato presidencial não se consubstanciará em muitos apoios e intenções de voto e, pior que isso, há casos como o de Medina Carreira (recorde-se o episódio espalhafatoso mais abaixo em que ele contracena com o agora candidato e Mário Crespo), em que a exuberância do apoiante poderá até sabotar a seriedade das intenções do apoiado. Mas nada obsta a que a intenção de Henrique Neto seja a de uma candidatura cívica, talhada à sua personalidade, faltando-me perceber o que – de acordo com algumas reacções propagandeadas pela comunicação social – lhe faltará para estar a ser tratada com tanta condescendência quando comparada com outras proto-candidaturas da mesma área política que, por aí circulam, como se fossem para levar a sério e para ganhar: Sampaio da Novoa – quem?; Carvalho da Silva – como?
¹ Houve nessas eleições de Janeiro de 2011, apenas 4,5 milhões de eleitores. Houvera nas eleições presidenciais precedentes, em Janeiro de 2006, 5,5 milhões, e voltaria a haver outro tanto (5,6 milhões) nas eleições legislativas de Junho de 2011, dali por cinco meses.
23 março 2015
AS CONSEQUÊNCIAS DA DEFLAÇÃO E O PROBLEMA DA GRÉCIA
Apesar de noticiado com alguma ligeireza, remunerar as poupanças a 0% pode tornar-se num problema sério se os bancos persistirem nessa prática. Há lóbis que se alarmam e nos alertam para as fugas de capitais mas é bem possível que, com a falta de segurança que o sistema bancário nos tem transmitido nos últimos anos (BPP, BPN, BES), o problema possa ser outro, mais prosaico, e que a fuga de uma parcela menos sofisticada dos detentores desses capitais possa não ser para fugir para muito mais longe do que debaixo da cama de cada um. E isso será dinheiro e poupanças que saem do circuito financeiro sem proveito para ninguém, um problema que na nossa economia parecia ter sido erradicado na segunda metade do século passado.
Veja-se o que está a acontecer na Grécia onde, por essas razões e mais ainda por todas as outras que se sabe, a decisão mais prudente de um aforrador local é fazer aquilo mesmo: converter as poupanças em numerário, preservando-lhes o valor, já que, no caso de uma saída da Grécia do Euro, os restantes países da zona não teriam capacidade logística para proceder a uma permuta simultânea das notas e moedas em circulação em todos os outros países onde a moeda circula. O fenómeno está a provocar uma continuada crise de liquidez no sistema bancário grego que só tenho visto ser discretamente noticiada (em Janeiro..., em Fevereiro...). Em Março, e agora com outra visibilidade mediática, Tsipras terá de voltar ao assunto com aquela pose grega de que o problema é mais de todos nós do que propriamente deles. Engraçado como os gregos querem continuar com o Euro, preparam-se para sair dele e entalam o primeiro-ministro que elegeram para lhes resolver essa contradição...
CENTENÁRIOS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL - 2
Na madrugada de 22 de Março de 1915 dois zeppelins alemães realizaram um ousado raid nocturno sobre Paris, apanhando os franceses completamente de surpresa. Sobrevoando a cidade a uns meros 150 metros de altitude mas sem grande oposição, as tripulações dos dirigíveis foram largando foguetes luminosos presos a balões para se orientarem até localizarem os seus alvos: as gares ferroviárias. Foram assim atingidas tanto a gare do Norte quando a de Sant-Lazare (Noroeste) com um total de sete bombas. O resultado mostrou o quanto, apesar das aparências, as autoridades francesas e a sociedade em geral estavam impreparadas para este género de operações: aquelas poucas bombas provocaram um total de 24 mortos e 41 feridos. Depois da operação, as duas aeronaves retiraram-se sem serem importunadas: recorde-se que a primeira esquadrilha de caça havia sido criada há pouco mais de mês e meio. Mas a intenção dos alemães seria mais a de forçar os franceses a alocar recursos para a proteção da sua capital do que abrir uma nova frente de guerra: o próximo raid sobre Paris só virá a ter lugar a 29 de Janeiro de 1916. A ilustração que encima a história é de época e a sua autora é Jeanne Bertrand.
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22 março 2015
A «PLAYLIST» DE UM POLÍTICO METIDO EM SARILHOS
Nos tempos que correm, em que ser-se convidado para fazer uma playlist é sinónimo de distinção, permitam-me especular sobre o que seriam as opções adequadas aos tempos difíceis feitas por Paulo Núncio, caso o seu gosto musical fosse o daquela linha nostálgica das canções das décadas de 70 e 80.
Donna Summer, Hot Stuff
Laura Branigan, Self Control
Gloria Gaynor, I Will Survive
Adenda: Depois de se saber o conteúdo da prédica dominical do professor Marcelo na TVI penso que, por via das dúvidas, será assisado adicionar mais uma canção...
Leonard Cohen, So Long, Marianne
PREDESTINADOS - 1
Há pessoas que parecem ter uma relação pessoal complicada com as demonstrações de gratidão e que possuem a vocação inata de conseguirem fazer-nos o favor de aceitar aquilo que lhes é oferecido. O instantâneo é, infelizmente, de autor desconhecido.
21 março 2015
«C'EST LE PRINTEMPS»
Há cinquenta anos Léo Ferré cantava C'est le Printemps, uma daquelas cancões tão tipicamente francesas, cuja necessidade de se fazer ouvir de quando em vez se sente, por se evocar uma banalidade recorrente. Hoje é 21 de Março e começa a Primavera. Não é preciso reformar estruturalmente o ritmo do seu aparecimento, nem a subsistência de uma tal estação estará acima das nossas possibilidades... A existência do ciclo da Primavera é perene, a do ciclo de Cavaco Silva está a caducar.
y a la natur' qu'est tout en sueur
dans les hectar's y a du bonheur
c'est l'printemps
y a des lilas qu'ont mêm' plus l'temps
de s'fair' tout mauv's ou bien tout blancs
c'est l'printemps
y a du blé qui s'fait du mouron
les oiseaux eux ils dis'nt pas non
c'est l'printemps
y a nos chagrins qu'ont des couleurs
y a mêm' du printemps chez l'malheur
y a la mer qui s'prend pour Monet
ou pour Gauguin ou pour Manet
c'est l'printemps
y a des nuag's qui n'ont plus d'quoi
on dirait d'la barbe à papa
c'est l'printemps
y a l'vent du nord qu'a pris l'accent
avec Mistral il pass' son temps
c'est l'printemps
y a la pluie qu'est passée chez Dior
pour s'payer l'modèl' Soleil d'Or
y a la route qui s'fait nationale
et des fourmis qui s'font la malle
c'est l'printemps
y a d'la luzerne au fond des lits
et puis l'faucheur qui lui sourit
c'est l'printemps
y a des souris qui s'font les dents
sur les matous par conséquent
c'est l'printemps
y a des voix d'or dans un seul cri
c'est la Sixtin' qui sort la nuit...
y a la natur' qui s'tape un bol
à la santé du rossignol
c'est l'printemps
y a l'beaujolais qui la ramène
et Mimi qui s'prend pour Carmen
c'est l'printemps
y a l'îl' Saint-Louis qui rentre en Seine
et puis Paris qui s'y promène
c'est l'printemps
y a l'été qui s'point' dans la rue
et des ballots qui n'ont pas vu
Qu'c'était l'printemps...
dans les hectar's y a du bonheur
c'est l'printemps
y a des lilas qu'ont mêm' plus l'temps
de s'fair' tout mauv's ou bien tout blancs
c'est l'printemps
y a du blé qui s'fait du mouron
les oiseaux eux ils dis'nt pas non
c'est l'printemps
y a nos chagrins qu'ont des couleurs
y a mêm' du printemps chez l'malheur
y a la mer qui s'prend pour Monet
ou pour Gauguin ou pour Manet
c'est l'printemps
y a des nuag's qui n'ont plus d'quoi
on dirait d'la barbe à papa
c'est l'printemps
y a l'vent du nord qu'a pris l'accent
avec Mistral il pass' son temps
c'est l'printemps
y a la pluie qu'est passée chez Dior
pour s'payer l'modèl' Soleil d'Or
y a la route qui s'fait nationale
et des fourmis qui s'font la malle
c'est l'printemps
y a d'la luzerne au fond des lits
et puis l'faucheur qui lui sourit
c'est l'printemps
y a des souris qui s'font les dents
sur les matous par conséquent
c'est l'printemps
y a des voix d'or dans un seul cri
c'est la Sixtin' qui sort la nuit...
y a la natur' qui s'tape un bol
à la santé du rossignol
c'est l'printemps
y a l'beaujolais qui la ramène
et Mimi qui s'prend pour Carmen
c'est l'printemps
y a l'îl' Saint-Louis qui rentre en Seine
et puis Paris qui s'y promène
c'est l'printemps
y a l'été qui s'point' dans la rue
et des ballots qui n'ont pas vu
Qu'c'était l'printemps...
...OU HÁ MORALIDADE...
Há uma frase histórica e sábia de um general vitorioso mas lúcido que após a batalha admitiu que não sabia quem fora o responsável pela vitória que o seu exército acabara de alcançar; mas acrescentava que isso não o impedia de saber quem teria sido o responsável caso o desfecho da batalha tivesse sido diferente: ele. Mais do que uma história com moral trata-se de um processo de, recorrendo ao contraditório, avaliar as responsabilidades dos intervenientes mais evasivos a elas. E é aí que Paulo Núncio não escapa: tratasse-se de uma referência de imprensa elogiosa ao trabalho da Autoridade Tributária (veja-se este exemplo de Dezembro passado, ilustrado pela fotografia de... Paulo Núncio) e, nesse caso, ninguém consegue imaginar o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais a conceder um destaque mediático equivalente ao já recebido pelo dr. Brigas Afonso – quem? – ou pelo dr. José Maria Pires – quem? – pela suas contribuições para aquele hipotético sucesso. Vistas por este prisma da reciprocidade e da coerência, as questões da responsabilização dos dirigentes políticos tornam-se cristalinas e isentas de sofismas: se eles podem ser considerados bestiais quando são umas bestas, também podem ser considerados umas bestas, mesmo que sejam – ou se considerem... – bestiais.
20 março 2015
«WICKED GAME»
Confesso que, quando originalmente li a primeira das notícias acima em finais de Setembro passado, desconfiei dela, por suspeitar que se tratasse de uma notícia plantada para nos dar a impressão de uma inflexão das relações do governo português com a tróica, consideradas até aí muito subservientes durante todo o período da intervenção, na altura precisa em que Carlos Moedas, que corporiza como ninguém essa subserviência, estava de partida para ocupar o seu lugar de comissário em Bruxelas. Quase seis meses decorridos, ao ler a segunda das notícias, as minhas suspeitas desvanecem-se para se substituírem pela perplexidade quanto à valia técnica dos quadros encarregados de nos policiar. Se estes temiam pelas repercussões que o aumento do salário mínimo poderia desencadear e se Portugal registou a maior queda dos custos laborais de toda a União Europeia (8,8%) no trimestre que se seguiu a esse temor, imagine-se agora qual teria sido a amplitude da contracção dos custos salariais dos portugueses se não se tivesse manifestado aquela disposição de actualizar o salário mínimo nacional. Ou então não, que afinal o temido sinal de complacência acima mencionado acabou por não vir a influenciar a realidade económica e os portugueses continuaram a progredir, a trabalhar cada vez mais por menos dinheiro. Em síntese, e mesmo depois da partida de Gaspar e de Moedas, e por muito que Maria Luís Albuquerque gabe o recheio dos cofres, os portugueses continuam a sentir-se um joguete de um jogo perverso, de um Wicked Game, que é jogado a partir de Bruxelas e onde Lisboa praticamente não conta. E preparem-se que, a haver certezas quanto ao futuro da Europa, em Democracia não há europeísmo que resista a isso!
...OUTRAS RESPONSABILIDADES POLÍTICAS
O exercício é recorrente: pega-se num caso da actualidade e confrontamo-lo com outro do passado em que os actores políticos se apresentavam na posição precisamente inversa. O resultado não costuma ser edificante. Desta vez trata-se do escândalo da tal Lista VIP que, não existindo, afinal existia e que deixou em muito maus lençóis o primeiro-ministro e sobretudo um secretário de Estado do CDS, Paulo Núncio. Em contraste, em Janeiro de 2011, o alvo havia sido o ministro Rui Pereira do PS. Nessa altura, como se pode ler mais abaixo, o CDS não se mostrara satisfeito com a imolação de dois directores, responsabilizados pelo fiasco que fora o registo eleitoral para as eleições presidenciais daquele mês e que tornara a vida de alguns eleitores num tormento quando não os impedira mesmo de votar. Segundo o CDS, Rui Pereira ou um dos seus secretários de Estado teriam que – segundo a fórmula consagrada para essas ocasiões – extrair as consequências políticas dos factos. Claro que - e perdoe-se-me a grosseria - Rui Pereira não extraiu porra nenhuma e lá continuou mais quatro meses até ao governo cair por causa do chumbo do PEC IV. Relembre-se o quanto a propensão para se ficar agarrado ao poder é antiga e, ao contrário do que se está a ouvir por aí, não começou com este governo. O que eu espero é que Rui Pereira não tenha o descaramento de dizer agora alguma coisa sobre assumpção de responsabilidades políticas lá do cantinho da CMTV onde por ora, perora.
Voltando à actualidade, agora é o PS que não se dá por satisfeito com os dois directores que já foram alijados borda fora por causa da Lista VIP e parece querer continuar a escarafunchar num assunto que lhe parece prometedor: Paulo Núncio não parece aquele género de político susceptível de despertar um particular entusiasmo solidário entre as hostes governamentais e o (notório) desconforto em o defender está a tornar-se num pratinho mediático pelas piruetas a que força (veja-se a quase jura solene de Lobo Xavier no vídeo abaixo, feita antes da admissão da existência da lista, depois necessariamente desmentida pelos factos). Paulo Núncio é um reconhecido especialista em fingir dizer o que não disse. Mas claro, como já deixei aqui ontem expresso, não creio que que Pedro Passos Coelho esteja disposto de bom grado a deixar sair Núncio, para ter de se dar ao trabalho de ir desenterrar alguém disponível para fazer os seis meses de governo em falta. Mas o que me levou a realçar neste poste o contraste entre estes dois casos é que, tendo ouvido referências a várias outras demissões ministeriais, não os vi a estes dois casos mencionados e emparelhados em lado algum, num emparalhamento pertinente mas inconveniente para além da própria contradição, porque é transversal ao espectro político. Nem um Miguel Abrantes da Câmara Corporativa, nem um colunista do Observador querem falar disto assim...
Em jeito de remate e para que conste: sou de opinião
que Paulo Núncio se deve demitir; assim como Rui Pereira o devia ter feito. O
facto de que a intersecção dos conjuntos dos que se dispõem a defender uma e
outra demissão ser, por sua vez, um conjunto praticamente vazio, explicará
porque é que, no plano ético, a política tem a reputação que tem: poucos são o que por lá andam respeitando a verdade, mesmo que esta se possa virar contra as suas simpatias clubísticas. E o facto de,
quatro anos passados, quase ninguém lembrar a (falta de) atitude de Rui Pereira
mostra também o correcto valor que o colectivo atribui a esses gestos e a essa falta
de ética. Mas depois não nos queixemos.
19 março 2015
SIGA P'A BINGO
Como cantava a Madalena Iglésias, sei quem ele é, ele é um bom rapaz, um pouco tímido até, mas há que reconhecer que Luís Marques Guedes não está talhado para estas coisas de remendar as broncas em que o governo se mete. Falta-lhe inteligência e falta-lhe sensibilidade para a manha que era suposto esperar de alguém que desempenhe aquela função. Ao fazer hoje a apresentação total da questão [da lista dos VIP do fisco] como o governo a vê, o ministro conseguiu no processo deixar à imprensa a expressão declarações incompletas para esta a abocanhar quando qualificasse aquilo que fora dito por Pedro Passos Coelho e por Paulo Núncio. Ora uma declaração incompleta é, por exemplo, eu considerar que Marques Guedes não tem jeitinho nenhum para o cargo que ocupa; as declarações que Passos Coelho e Núncio proferiram não são incompletas, são falsas: em ambas se desmentia, com mais ou menos enfase e clareza, que houvesse alguma lista VIP e afinal havia-a - e não nos esqueçamos que só chegámos a este ponto porque a revista Visão publicou um artigo que tornava documentalmente insustentável qualquer desmentido da sua existência.
Por muito escabrosa que seja a bronca, um problema distinto é o da demissão do secretário de Estado. Não se quer demitir? Não dá jeito ao primeiro-ministro que ele se demita? De facto, está-se a seis meses do fim do governo, e é aborrecido ter de ir arranjar um palerma que se disponha a entrar para o governo nesta altura para fazer apenas o fim do turno. Para mais quando, uma ampla percentagem dos que possam estar interessados naquelas pastas, também estão (como a ministra...) atascados nos escândalos dos swaps? Deixe-se lá continuar quem lá anda (Marques Guedes incluído...) e, como diz o ditado popular, siga p'a bingo!
Por muito escabrosa que seja a bronca, um problema distinto é o da demissão do secretário de Estado. Não se quer demitir? Não dá jeito ao primeiro-ministro que ele se demita? De facto, está-se a seis meses do fim do governo, e é aborrecido ter de ir arranjar um palerma que se disponha a entrar para o governo nesta altura para fazer apenas o fim do turno. Para mais quando, uma ampla percentagem dos que possam estar interessados naquelas pastas, também estão (como a ministra...) atascados nos escândalos dos swaps? Deixe-se lá continuar quem lá anda (Marques Guedes incluído...) e, como diz o ditado popular, siga p'a bingo!
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