Foram poucos os países europeus que conseguiram manter-se
neutrais ao longo de toda a Segunda Guerra Mundial: Espanha, Irlanda, Portugal,
Suécia, Suíça e ainda a semi-europeia Turquia (acima). O que não quer dizer que todos
eles não tivessem sofrido, ainda que de maneira mais atenuada, algumas
consequências severas, nomeadamente bloqueios dos circuitos comerciais
tradicionais do tempo de paz que se traduziram em racionamentos, rupturas e substituições nos
abastecimentos de certos produtos junto das populações civis. Entre nós, quando
se narra a experiência portuguesa da época não se costuma considerar (infelizmente)
dados e referências de outras experiências contemporâneas compatíveis, como seja
o caso irlandês (abaixo, Eamon de Valera em revista às tropas), de que aqui se pretende fazer uma síntese.
A Irlanda à data do início da Segunda Guerra Mundial (Setembro de 1939) era um país ainda muito jovem: só se
tornara independente do Reino Unido em Dezembro de 1922 ou seja, há menos de 17 anos.
Apesar de proclamada desde o início a sua intenção de permanecer neutral naquele
conflito onde a sua antiga potência colonial era um dos principais
beligerantes, a decisão era fortemente perturbada pela realidade de uma parte da ilha (a Irlanda do Norte) estar directamente envolvida como parte constituinte do Reino Unido. Também existia o problema da economia irlandesa ainda
estar muito interdependente da britânica. Este enquadramento político, que
era muito mais desfavorável do que o que se apresentava então a Portugal (por
exemplo), era compensado por um outro factor: no que dizia respeito às necessidades
mais elementares da sua população a Irlanda podia considerar-se auto-suficiente.
Em termos alimentares, a agricultura irlandesa
especializara-se em abastecer o grande vizinho britânico em carne, leite e
lacticínios (acima). Por outro lado, a batata irlandesa era (e é) um dos produtos da Irlanda
que goza de uma fama mundial (abaixo) – provavelmente e sobretudo pelas pragas que a afectaram e pelas suas consequências mas desta vez os irlandeses não corriam o perigo de passar fome... E, embora pudesse ser monótona, a dieta à disposição dos irlandeses era rica em proteinas e hidratos de carbono – ao contrário do que aconteceria em Portugal.
Complementarmente, para as
necessidades de energia, a natureza fora generosa para com os irlandeses: à
redução das importações do carvão inglês, a Irlanda podia recorrer a um
sucedâneo, a turfa (peat em inglês), de que existiam quantidades que eram praticamente ilimitadas no seu solo (mapa
abaixo). Embora se tratasse de um produto de qualidade inferior à hulha, era de fácil extracção (podiam ser os próprios utilizadores particulares a fazê-lo) e era um expediente razoável como aquecimento para
tempos de guerra. Portugal não fora bafejado com essa sorte.
Os grandes problemas da Irlanda e dos irlandeses nesses anos da Guerra começavam depois da satisfação dessas necessidades mais básicas. Referindo-nos
ainda aos recursos energéticos, a Irlanda não dispunha sequer de uma refinaria e
os produtos petrolíferos eram importados do Reino Unido já refinados.
Imagine-se quão escassa era a circulação automóvel num país cujas disponibilidades de
combustíveis dependiam das remessas de um vizinho que tinha outras prioridades… Apesar
do esforço em estabelecer indústrias manufacturadoras na Irlanda depois de
1922, em muitos sectores da actividade económica ainda prevalecia uma lógica
de uma Irlanda que se desenvolvera integrada e interdependente no espaço comercial da
Commonwealth. Essa herança tornava-se evidente até ao limiar do paradoxo na
questão naval…
A Irlanda é uma ilha e contudo não tinha nem um sector
pesqueiro que pudesse enriquecer a dieta alimentar nesses tempos de parcimónia,
nem uma marinha mercante de longo curso que lhe permitisse manter uma certa autonomia na
escolha dos seus parceiros comercias – alternativas ao omnipresente Reino Unido
vizinho. Para suprir isso, em 1941 o Estado irlandês viu-se obrigado a criar uma empresa de
navegação, a Irish Shipping Ltd. O seu primeiro navio, adquirido a um armador
grego, veio a ser baptizado Irish Poplar (acima) e o seu primeiro carregamento foi
uma importação de cereais do norte de Espanha (produto de que a Irlanda também carecia).
Contudo, a rota mais percorrida por ele e pelos navios que depois se lhe juntaram foi a ligação com Lisboa – que ganhou a
designação popular de Lisbon Run...
O que tornava a ligação com o porto de Lisboa (acima, um rebocador da época) tão popular é que,
apesar dos racionamentos locais, por causa das vicissitudes da Guerra e da sua localização geográfica, aquele se tornara num importante entreposto de comércio
onde os norte-americanos podiam desembarcar as suas mercadorias manufacturadas com
muito mais segurança dos ataques dos U-boot alemães, mas também onde chegavam alguns produtos
de origem tropical que os britânicos haviam passado a fornecer aos irlandeses apenas a conta-gotas:
o chá (que os irlandeses consumiam com tanto entusiasmo quanto os seus vizinhos), o
tabaco, o cacau, o café ou a fruta (em especial os citrinos de origem local). Por vezes, era nas próprias colónias portuguesas que os
navios irlandeses iam suprir essas carências: na gravura abaixo, o Menapia vem
embarcar uma carga de óleo de palma a São Tomé, matéria-prima para a produção
do prosaico sabão…
Visto da perspectiva das carências que afligiam
Dublin, Lisboa podia ser encarada como uma cidade de abundância, assim como o
reverso será verdadeiro quando se compara o consumo médio de proteínas entre lisboetas
e dublineses por esses anos. Querer extrair ilações políticas desta última perspectiva, esquecendo a anterior, não é bem História, é uma outra coisa distinta, metamorfoseada dela...
Tomo apenas a liberdade de chamar a atenção que a bandeira da Europa já é do pós-Guerra (da 2.ª).
ResponderEliminarSe a incluí ou mencionei neste poste foi por lapso. Onde o fiz?
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