16 de Novembro de 1971. Quando se olha para o destaque da primeira página do jornal desse dia é que se pode perceber o quanto certas «crises» têm uma previsível regularidade sazonal. A notícia começa com o parágrafo: A gripe «A-2 Hong Kong» alastra pela Europa, sobretudo pelos países de Leste, onde já provocou vítimas. Só depois é que seguem as explicações para que não houvesse ainda (e vale a pena destacar o uso da palavra ainda) motivo para alarme. Este é também o típico jornalismo: para captar a sua atenção, assustam-se os leitores, pretendendo que se está a fazer precisamente o contrário. Outro tópico, completamente distinto, é aquele que aparece no canto inferior direito da mesma primeira página: o anúncio para essa noite de mais uma «conversa em família» do presidente do Conselho Marcello Caetano. Nesta conversa falar-se-ia das reformas aplicadas a vários sectores do Estado, nomeadamente no sistema de Previdência Social, na Administração Pública, na Educação Nacional e no ministério das Comunicações. O processo banalizara-se (houvera uma no mês anterior e virá a haver outra em Dezembro) e perdera a aura da novidade em contraste com o ensimesmamento do período de Salazar. E os problemas do regime não se resolviam por se tornar mais fluída a comunicação entre os dirigentes e o povo. Naquela mesma edição e numa página interior que cobria os trabalhos da Assembleia Nacional (p. 9) podia ler-se «que o deputado Sá Carneiro apresentara um projecto de lei sobre a inconstitucionalidade da Lei nº 3/71». Era uma daquelas reacções esdrúxulas de Sá Carneiro, já que a Lei nº 3/71 era a própria revisão constitucional! Era uma iniciativa que estaria evidentemente condenada ao fracasso, mas podíamos vê-la como a sua resposta à descompostura pública que Marcello Caetano pregara, numa outra «conversa em família» a 23 de Julho, às propostas de revisão constitucional que Sá Carneiro e a ala liberal haviam apresentado. Com a clarividência da distância de cinquenta anos, o problema de fundo de Marcello Caetano não seria o da sua relação com as pessoas ou o da sua impopularidade. O problema de fundo era a erosão de quadros de qualidade da nova geração que se dispusessem a manter o regime, como recentemente assinalei aqui, de resto, com o caso de João Salgueiro.
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