23 de Julho de 1971. Ao serão de há 50 anos tinha lugar na RTP uma singular, talvez a mais atípica, conversa em família de Marcello Caetano. Como se percebe escutando-a, o processo de revisão constitucional atrasara-se, obrigara a uma sessão extraordinária da Assembleia Nacional que se iniciara a partir de meados de Junho de 1971 entrando pelo mês seguinte, o que tornara o Verão de 1971 anormalmente tépido para o que era costume num regime já muito habituado a certos rituais, a suscitar a presença do presidente do Conselho nos ecrãs quase a meio de um Estio tradicionalmente plácido. Recomenda-se a quem não o conheça, a assistir a um pouco da conversa em família para lhe apreciar o estilo, de uma outra época, de um outro século. Com a duração de uma meia hora e preenchida completamente por um monólogo de Marcello Caetano a fazer valer os seus dotes didáticos de professor académico, o conteúdo da conversa que se pretendia íntima com o espectador, a complexidade de algumas passagens do que é explicado, ao nível de uma aula de faculdade de Direito, justificaria muito mais as explicações ulteriores dos Paulos Baldaia ou dos Ricardos Costa da actualidade. Mas nesse tempo não havia tais explicações mesmo quando pertinentes, já que não se pressupunha que a audiência fosse estúpida por defeito, muito menos havia estrelas do comentário televisivo. Mas, mais do que proceder a uma análise comparativa sumária dos procedimentos regimentais entre alguns parlamentos da Europa ocidental, o que terá tornado memorável esta conversa em família em particular, para além da altura do ano em que foi emitida, foi o seu alvo político: a denominada ala liberal. É que, para além do projecto canónico com o patrocínio governamental, houvera mais dois outros projectos de revisão da Constituição em discussão, de origens das franjas reformistas do regime. E, por essa vez, um parlamento que era conhecido pelo seu monolitismo e pelo carácter rígido da coreografia das suas sessões ter-se-á animado com os underdogs a granjearem as simpatias decorrentes do capital de queixa de quem joga as regras do jogo e o perde porque elas estavam viciadas desde o começo. A condescendência e menorização de que Marcello Caetano dá mostras nesta conversa em família em relação àquilo que seria a oposição possível no quadro da abertura do regime (a denominada a Primavera Marcelista), acabou por lhe assentar muito mal. Marcello Caetano não estava a ser gracioso na forma como vencera um desafio que as elites de uma outra geração (hoje octogenários) não concebera para ser assumido pessoalmente pelo chefe do governo. Para muitos daqueles que acompanharam e perceberam aquela pequena meia hora de conversa do presidente do Conselho, a Primavera terminara naquela noite quente de Verão...
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