02 outubro 2020

O TEMPO DOS TECNOCRATAS

2 de Outubro de 1970. A substância da notícia será, aparentemente, a da tomada de posse de Carlos Correia Gago como director-geral do Secretariado Técnico da Presidência do Conselho, posse essa que é conferida pelo subsecretário de Estado do Planeamento Económico, João Salgueiro. Ambos contam então 36 anos e representam as expectativas de uma inflexão política positiva propiciada pelo novo período político do marcelismo, assente nos méritos da tecnocracia e no vocabulário mágico que ela arrastava consigo - a começar pelas palavras plano e planeamento. Mas atentemos ao teor dos discursos que transcrevo da notícia:

«Não tem sido muito satisfatória ao longo do último decénio a actividade de planeamento em Portugal» - confessou João Salgueiro, embora declarando ser a experiência portuguesa de planeamento «uma das mais antigas do conjunto da Europa Ocidental».

O subsecretário de Estado do Planeamento, que semeou o seu discurso de frequentes improvisos, disse ainda que as mais recentes orientações, «que neste domínio foram superiormente definidas pelo sr. Presidente do Conselho» (nota do autor: Marcello Caetano), têm sido norteadas por duas finalidades principais a curto prazo:

a) - «estabelecer as estruturas indispensáveis para que o planeamento corresponda ao exercício efectivo pela administração portuguesa de uma função de coordenação e promoção em ordem ao fomento económico e social

b) - assegurar maior disciplina das actividades de preparação e execução dos Planos e Programas, saneando práticas de funcionamento de que resultam deficiências na projecção e selecção dos empreendimentos, atrasos e mau controle das realizações em curso.»

Por seu turno, o eng.º Correia Gago disse da sua satisfação pessoal por ter sido escolhido para dirigir o Secretariado Técnico e afirmou, em dado passo do seu discurso:

«O que desejo sublinhar é que só com os planos nos é possível fazer uma ideia de onde poderíamos e viremos a poder estar e de que teria sido e será preciso fazer para isso; e só pelo «contrôle» e análise da sua execução se pode diagnosticar com relativa precisão por que motivo se não terá conseguido avançar com a rapidez prevista, que factores estruturais e institucionais ou que tipo de recursos falharam impedindo que se atingissem os resultados previstos, qual o realismo com que foram estimados os custos dos programas, em que medida se terão exagerado as expectativas de capacidade de execução do sector público e da capacidade de reacção e de iniciativa do sector privado.»

Embora o conteúdo dos discursos representasse uma ruptura com os tempos precedentes, e impressionasse os contemporâneos, por causa não apenas da forma e da inovação, como sobretudo pela aparência de auto-exigência, os cinquenta anos de distância dão-nos uma perspectiva muito mais moderada dos progressos práticos da então nova linguagem tecnocrática. O que não invalida que, apesar do tempo e do desgaste, posso imaginar aquele mesmo tipo de linguagem a ser devidamente reciclado para «dizer umas coisas inteligentes» a respeito da estratégia para o plano de recuperação Portugal 2020-2030 (vulgo plano Costa Silva). Atenção: trata-se de uma piada irónica. Que isto não seja ideia para que algum canal ainda se lembre de convidar João Salgueiro para aparecer, pela enésima vez, na televisão...

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