Há mais de 30 anos que conheço este artifício argumentativo de alguém que se mostra excessivamente enfático - onde não falta uma enorme teatralização - fingindo atribuir ao oponente apenas as mais puras das intenções, recusando-se a reconhecer o óbvio: que são adversários e que discordam frontalmente do assunto em disputa. Já vi o artifício feito por gente de todo o lado, mas os tripeiros fazem-no com uma teatralidade ainda mais excessiva o que, conjugado com o sotaque, acabou por me levar a classificar o truque como «o número de suonso», parodiando-lhes o sotaque e a forma como pronunciam a sua figura, de sonsos. Um «número de suonso» é, por exemplo, ouvirmos um Pinto da Costa a indignar-se com uma arbitragem que prejudicou o futebol clube do Porto e, ao mesmo tempo, escutá-lo noutro lado - ao telemóvel - a discutir a «fruta para dormir» para os árbitros.
Vai longo o preâmbulo, mas torna a apresentação evidente: acima temos o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, tripeiro dos quatro costados, a fazer o número de «suonso» com a exuberância e a desfaçatez tão típica dos seus conterrâneos. O ministério que Pizarro tutela anda há dezasseis meses em negociações com os sindicatos dos médicos, dos quais, os últimos doze meses já sob a sua tutela directa. E o que tem estado à vista da opinião pública é que não parece haver grande pressão da parte governamental para que se alcance qualquer acordo: quando se chega a mais uma fase de impasse, como acabou de acontecer em meados deste mês, quem aparece a queixar-se são os sindicatos.
Contudo, esta mais recente escalada da parte dos médicos, em que estes agora se recusam a cumprir mais horas extraordinárias do que aquelas que lhes são impostas por lei, contém dois elementos relevantes. O primeiro é que a iniciativa parece genuinamente originária das bases e, por isso, incontrolável: nem sindicatos, nem a Ordem, têm poder ou capacidade de influência para promover ou recomendar uma tal medida. Se ela está a acontecer é porque os médicos estarão, de facto, saturados, e a perspectiva de mais ganhos financeiros já não os engoda. O segundo elemento relevante é que esta nova atitude dos médicos estará a causar um efectivo desgaste ao sistema, a ponto de fazer parar as urgências, e, consequentemente, está a pôr em causa não só o aparelho político (PS), mas também as próprias organizações da classe, que parecem ultrapassadas pelos acontecimentos.
O que parece desnecessário é, neste quadro que agora parece realmente complicado, o ministro da pasta continuar a aparecera fazer estas figuras de manguela*. Não fosse assim, caso o levem a sério, porque não perguntar-lhe o resultado daquilo que ele prometera ainda no princípio do mês passado, que aconteceria no princípio deste mês? Veja-se abaixo. Alguém está interessado em perguntar-lhe se, de facto, se chegou a alcançar o objectivo de ter assinado «os autos de transferência de competências com 95% dos municípios», como ele acreditava...
Outra do manguela*: a campanha da vacinação Outono-Inverno 2023 era para ser «iniciada na segunda quinzena de Setembro», arrancou in extremis no último dia útil do mês (29 de Setembro)... mas depois do arranque parou tudo porque já se percebeu que não há vacinas suficientes para continuar ao mesmo ritmo de vacinação, só havia umas quantas para as cerimónias.
* Manguela (regionalismo tripeiro) com o significado de malandro, indivíduo preguiçoso. É para não o chamar mesmo de azeiteiro, que é um sinónimo local para chulo. Só que, fazendo eu o meu número de suonso, posso considerar que há coisas que não se chamam a um ministro...embora ele mereça.
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