Eu já deixei de ver telenovelas há tanto tempo que já não sei se ainda se mantém a prática de antecipar algumas cenas do capítulo seguinte, para espicaçar a curiosidade do auditório. Noutro contexto, porém, o da batalha nos meios mediáticos de um conflito laboral e político, sei reconhecer as antevisões das «cenas dos próximos capítulos». O conflito laboral e político a que me refiro é o braço-de-ferro entre o governo e os médicos. Que o governo tem estado a perder, no que respeita às urgências, depois da renúncia geral de muitos médicos em cumprirem mais horas extraordinárias do que as exigidas por lei. O bloqueio da classe não é activo, é passivo, e por isso o governo não tem por onde lhes pegar - a não ser por medidas de força que o descredibilizariam aos olhos da opinião publicada e pública. Os responsáveis governamentais bem podem alertar para as consequências, anunciar uma catástrofe para o mês que entra, preparando a opinião pública, mas parece-me óbvio isso não desbloqueará o impasse. Mas notícias como a que se lê acima, parece ser o obrigatório passo seguinte, dando relevo mediático a um selecto conjunto de episódios negativos para a classe médica que ocorrem quotidianamente nos hospitais portugueses. Utilizando a opinião publicada (acima, o Jornal de Notícias, sedeado no Porto, tem sido uma «correia de transmissão» para os propósitos, tanto de Manuel Pizarro, como de Fernando Araújo...), creio poder antecipar que iremos assistir a um bombardeamento de notícias como a supra, ou até casos mais graves, com a intenção de conseguir deflectir as responsabilidades da crise das urgências do governo para os médicos.
Para quem já se tenha esquecido do que é capaz de se alcançar com estes exercícios de formatação da opinião pública, vale a pena recordar o que aconteceu em 2007, na altura contra o ministro da Saúde Correia de Campos e o processo de concentração das maternidades que ele havia patrocinado: noticiava-se o nascimento de crianças em ambulâncias como algo gravíssimo. Num artigo do Diário de Notícias de 2009 há até uma tabela acusatória: havia-se passado de 5 nascimentos em 2004 (antes do ministro) para 12 em 2007! O ministro Correia de Campos demitiu-se em Janeiro de 2008. Para contraste, para demonstrar que tudo aquilo não passou de manipulação mediática, note-se que apenas nestes últimos seis meses de 2023 consigo contar nove nascimentos em ambulâncias sem que do facto tivesse surgido qualquer crise política na Saúde: Maio (Aljustrel e Baião), Junho (Pataias e Valença), Julho (Melgaço e Marinha Grande), Agosto (Barcelos e Lourinhã), Setembro (Loures). Ou melhor, há uma crise política no sector da Saúde, o que é preciso é que se tenha aprendido com os exemplos passados a distinguir o que é informação do que é desinformação.
Adenda
Dois dias depois, um próximo capítulo, é o jornal Público que publica um artigo precisamente sobre o mesmo caso referenciado mais acima, artigo que termina com o parágrafo que inserimos abaixo. Da leitura desse parágrafo ficamos a saber que estes infelizes episódios ocorrem com uma frequência - porque os «números devem, na realidade, ser superiores aos reportados» - ocorrem em Portugal com uma frequência próxima de um caso por dia. Se é assim tão banal, ocorre perguntar porquê o destaque a este caso em específico e, sobretudo, porquê precisamente agora? (quando o conflito entre governo e médicos está ao rubro)
Sem comentários:
Enviar um comentário