15 maio 2019

...O APANHAR DAS CANAS

Eu quando aprendi - vai para uns cinquenta anos - a ladainha descritiva daquelas pessoas que «Fazem a festa e deitam os foguetes», ainda não lhe haviam acrescentado a parte chata do «apanhar das canas». Essa tarefa complementar (hoje meritória, na perspectiva da sustentabilidade do planeta), só me lembro de a ter ouvido uma boa dúzia de anos mais tarde. E confesso que me parecia estragar o efeito da ladainha original porque soava como um castigo para o folgazão que dispensava companhia. Os portugueses parecem ter uma relutância congénita em falar e comentar o que aconteceu nas celebrações chegado ao dia seguinte ao seu fim. É coisa para as mulheres a dias limparem e até parece rude alguém pedir explicações sobre os inúmeros excessos que se cometeram durante as festividades. Esse pudor transborda para inúmeros outros aspectos do nosso quotidiano. Continuar a acompanhar o cumprimento de promessas eleitorais, por exemplo. É incompreensível mas socialmente, o opróbrio parece recair sobre quem insiste em pedir satisfações e a vítima é quem não as presta. Como se, para certas pessoas e independentemente da seriedade do tema, tudo não passasse de um contínuo Carnaval. Mas não conheço melhor cronista que Miguel Esteves Cardoso para explicar essas idiossincrasias da alma lusitana. Miguel Esteves Cardoso que, por sinal e depois de incensar o cantor como acima se vê, seria uma das pessoas mais qualificadas para nos fazer perceber nesta quarta feira de cinzas, as razões pelas quais os espectadores (e o júri) do eurofestival não se impressionaram com a música "original, bonita, gozona, lírica, genuína, explosiva e arrebatadora" do Conan Osiris. Se calhar estou a ser chato por agora pedir a Miguel Esteves Cardoso que apanhe as canas dos foguetes que lançou... Adenda (17 de Maio): Descobri que não estava nada a ser chato, porque ele afinal não apanhou cana alguma, aproveitou a semana para falar... de fruta. Aqueles que estão mais atentos aperceber-se-ão que os bradados Vivas ao Conan Osiris eram uma crónica, mas que os seus elogios às cerejas e morangos e pêssegos e alperces e framboesas são uma opinião.
Nova Adenda (20 de Maio): E, passados uns meros três dias, aí o temos de novo, ao Miguel Esteves Cardoso, entusiasmado com mais alguém, no caso a nova coqueluche do Benfica, João Félix. É uma opinião. Se calhar estas são as genuínas, e as crónicas são os fretes. Se calhar, é ao contrário - eu gosto muito de salada de frutas, por exemplo, mas não ao ponto de opinar sobre ela. Fica-nos esta imagem poética clássica de quem saltita delicadamente de nenúfar em nenúfar; o Miguel saltita de arrebatamento em arrebatamento, e não há como ele para conferir entusiasmo a todos os nenúfares onde pousa.

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