Corto Maltese estreou-se na revista Tintin em 8 de Março de 1975 (nº 42 do 7º ano). Corto Maltese não terá chegado a participar no golpe, mas dali por três dias iria ser o 11 de Março, data em que iria começar o Processo Revolucionário em Curso (PREC) em Portugal. Mesmo tendo chegado a Portugal discretamente e sem participar nesse evento histórico, Corto Maltese já então não era um herói comum da banda desenhada.
Como um Messias de Antigo Testamento, a sua chegada fora anunciada e desejada por profetas, caso do redactor da correspondência da revista Tintin que, várias semanas antes da estreia, o anunciava em resposta ao desejo de vastas camadas de leitores que se mostra(va)m interessados em conhecer uma das grandes criações da banda desenhada moderna. Numa outra edição da revista, também semanas antes da grande data, já o leitor era informado com o problema (sério) da cor: o autor Hugo Pratt preferiria a edição da história no original, a preto e branco, mas a revista portuguesa estaria obrigada a seguir a versão pós-colorida que fora publicada na sua homóloga da Tintin belga.
As constatações eram várias que aquele não era mais uma estreia de um herói como acontecera com dezenas de outros ao longo dos vários anos de vida que já levava a revista Tintin. Antes da estreia, uma página apresentava (mais uma vez...) herói (Corto Maltese) e autor (Hugo Pratt). Era um caso único na história da revista. Tanto cerimonial para preceder o que veio a ser o desapontamento de muitos - creio que da grande maioria dos - leitores.
Porque a verdade prosaica é que Hugo Pratt desenha mal. Esta cena de uma luta em que intervém o herói, e que apareceu publicada algumas semanas depois da ansiada estreia, fala por si: as figuras estão desproporcionadas e o desenhador não faz a mínima ideia de como transmitir dinâmica aos objectos que desenha, o que transforma as imagens numa série de retratos estáticos desconexos.
E a correspondência dos leitores enviada para a revista começou a traduzir essa decepção: havia os leitores que eram mais brandos na expressão desse desapontamento. A Albertina Machado da carta de cima dizia-se desorientada. E o redactor da correspondência respondia pedagogicamente que Hugo Pratt se afastava daquilo que pode ser considerada a banda desenhada tradicional. Eram os leitores mais novinhos que tendiam, como ela, a desorientar-se. E a pretexto de esclarecimentos adicionais sobre o significado da série, seguia-se umas milongas sobre a biografia fictícia de Corto Maltese.
A Vitória Nunes mostrava-se menos suave: as personagens eram feias. E o redactor do correio dos leitores remetia evasivamente para uma história que acontecera com Uderzo - como se o desenhador de Asterix pretendesse ser realista.... E que Pratt desenhava segundo a sua maneira pessoal de criar tipos humanos. Por mim podiam nem ser humanos, podia até ser o Skblllz, desde que fosse bem desenhado. A Graça Maria Costa confessava-se decepcionada e também levava com a pedagogia do costume: os leitores mais novos ainda não se encontram preparados para aceitar aquela criação artística, uma criação artística que ultrapassa um certo nível de qualidade a que os leitores estão habituados. Dialética pura: os leitores estavam habituados a um padrão superior de qualidade dos desenhos e é por isso que reagiam negativamente...
Chegou a encetar-se um certo debate. José Manuel Andrade qualificava Corto Maltese de a desilusão do século. E prosseguia «esse tipo de banda desenhada esquisita, que apesar de alguns contrastes e cenários com um bom colorido (recorde-se que a cor não era da responsabilidade de Pratt - N.A.), não tem fundo, nem balões. Pode bem suceder que essas sejam as novas técnicas de fazer banda desenhada, mas nesse caso a sociedade está a andar para trás.» Em resposta a isso, várias semanas depois, João Augusto Ferreira rebatia-o contundentemente: «Este leitor revela um poder de apreciação fraco, e bastante superficial da realidade em que coloca Corto Maltese e, na verdade, não acredita na banda desenhada como uma forma de arte e cultura de massas (de massas? - N.A.). Para ele, a banda desenhada é uma espécie de bonecos desconexos e irreais, desligados de problemas que afectem verdadeiramente o Povo. E isto não falando no magnífico estilo de Corto Maltese.»
É fácil deduzir-se porém quais seriam as tendências dominantes quanto ao acolhimento dado pelo leitor tradicional do Tintin às aventuras de Corto Maltese. Um texto de fundo sobre a obra de Jacobs foi interrompido para que se publicasse um outro que era profundamente elogioso a Hugo Pratt: Introdução a uma obra-prima: "Una Ballata del Mare Sallato". Obra-prima! Como um kremlinologista (estava-se ainda em Dezembro de 1975), havia que saber ler nas entrelinhas como a vontade popular não se estava a vergar (como devia) às vanguardas esclarecidas do bom gosto de quem dirigia então a revista Tintin.
Moderando o entusiasmo, substituindo-o pelo bom senso e separando o que era bom daquilo que não o era, alheios ao que não passavam de petulâncias intelectuais e de poses de superioridade, o leitor Rui Gabriel da Silva opinava que o argumento de Corto Maltese era muito bom e original mas que o traço era péssimo, enquanto José Daniel Moreira qualificava o desenho de Corto Maltese como medíocre e que era a primeira vez que a revista Tintin apresentava desenhos tão mal feitos. É um conjunto de opiniões que ainda hoje posso subscrever.
Dali por alguns meses, a revista Tintin procede a uma espécie de relançamento, refrescando quase todas as histórias em publicação (nº 48 do 8º ano). É mais do que significativo que, contando-se entre as novas histórias uma de Corto Maltese, ela não seja usada como chamariz promocional (acima). As tais vastas camadas de leitores que se mostra(va)m interessados em conhecer uma das grandes criações da banda desenhada moderna, se calhar não existiam... Ou, tendo existido e não tão vastas, já se haviam satisfeito com o conhecimento concreto do que era aquela grande criação da banda desenhada moderna.
Também por acaso, dali por uma semana realizar-se-iam as primeiras eleições legislativas (25 de Abril de 1976). O país preparava-se para transitar para uma normalidade constitucional. O período do PREC transformava-se numa memória e com ela esfumavam-se as vontades de educar os gostos dos filhos adolescentes da burguesia. Como se vê acima, Hugo Pratt continuava a não saber desenhar, o que deixara de existir era um pateta no Tintin a tentar convencer-nos que o problema era nosso... Ainda hoje não sou um grande apreciador de Corto Maltese: Hugo Pratt passou a desenhar muito melhor do que o fazia originalmente, mas, para mim e que me desculpem os fãs, aquilo continua a não ser bem banda desenhada, costumam ser excelentes histórias, mas com ilustrações, algumas más.
Também eu me senti chocado com o "realismo" do traço do Hugo Pratt, ainda por cima educado pela banda desenhada dominante desde o primeiro número da revista - único entretenimento que tinha em África, pese os meses de atraso com que a revista lá chegava. E claro, preferia de longe as as pernas que saíam dos mini vestidos da Colombe Tiredaile tão magnificamente desenhadas pelo tarado do Dany!
ResponderEliminarque postal magnífico, Não o lera, e cheguei aqui via google, exactamente à procura de dados sobre esta enorme polémica (a "revolução coperniciana" no nosso Tintin semanal), coisas de um postal que estou a escrever - e preguiçoso para ir buscar na minha colecção os dados que queria. Isto foi polémica que deu brado...
ResponderEliminar