Num Festival de Cinema não é importante que aconteçam coisas importantes, o que é importante é que aconteçam coisas. No de Cannes deste ano, ainda a decorrer, uma das notícias que se difunde é sobre o vestido transparente de Rita Pereira que terá impressionado o Mundo; outra é que Julia Roberts quebrou protocolo e descalçou-se.
Aquele certame já assistiu a muitas transparências mas, pelos vistos, ainda não tinha assistido a uma actriz que se descalçasse. Ou, pelo menos, é isso que nos querem fazer crer. Na edição de 1985 daquele Festival o cineasta Jean-Luc Godard andava vestido com roupa opaca e devidamente calçado quando concorreu com o filme Détective, mas o que concitava as atenções à sua volta era o controverso Je Vous Salue Marie que fora lançado no início daquele ano e apresentado no Festival de Berlim. A palavra chave na promoção daquela sua última obra era controvérsia. Era preciso realçar o quanto o filme o era, controverso, por causa da potencial reacção ofendida dos crentes - atente-se que a promoção do filme chegou a ser feita com um discurso do Papa João Paulo II que o condenava expressamente.
Foi por isso que, a propósito destes faits-divers festivaleiros, quando Jean-Luc Godard foi brindado com uma tarte merengada na cara, à frente de uma equipa de televisão e de um batalhão de fotógrafos que o acompanhavam, o episódio foi acolhido por muitos sobrolhos alteados pelo cepticismo. O atirador, que se descobriu ser um belga chamado Noël Godin que adquirira uma fama à Warhol por protagonizar episódios semelhantes, atribuíra as causas do gesto ao filme, mas mostrara ter um timing e um sexto sentido cénico tão oportuno que levantou as suspeitas - nunca completamente erradicadas - de que a cena fora combinada pela própria vítima.
De toda a maneira, olhando para a expressão de Godard na fotografia inicial e como alguém veio a escrever ironicamente, se assim foi, a tarte não tinha a cobertura que ele tinha encomendado... Para o que lhe interessaria, o episódio não atrapalhou, muito pelo contrário, a promoção ao filme que estava em marcha. Havia controversa em Itália. Quando, daí por umas semanas, o filme Je Vous Salue Marie (lembro-me do quanto era mais chique dizer o título no francês original!) foi exibido pela primeira vez em Lisboa, já não se dispensou uma boa barracada que foi até digna da atenção do telejornal do dia seguinte (a partir de 1:47). Trinta anos dão outra perspectiva à arte...
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