A caricatura acima tem o traço, a verve e a inspiração reconhecíveis da revista The Economist. Apesar de nos mostrar um Matteo Renzi que se afunda com o seu país agrilhoado ao peso da dívida, o teor da notícia que o desenho ilustra é até particularmente elogioso para com o papel que a Itália possa vir a desempenhar para ultrapassar o marasmo em que, mais do que apenas a Itália, toda a Europa parece ter submergido. Mas é a própria imagem que desencadeia uma das dúvidas mais constantemente contornadas quando se fala da actual situação financeira mundial: qual é a identidade, qual é a nacionalidade dos credores que detém as dívidas soberanas, como a italiana mas também a grega, a espanhola, ou a nossa? Mesmo os leigos perceberão que aquela bola de ferro que arrasta Renzi não será um peso morto só por si, dividida em gomos (pesados) ela pertencerá a alguém. A quem? Se pegarmos no caso da dívida grega, que é a que mais estará a ser escrutinada pelas razões óbvias, até nesse caso, as explicações são manifestamente insuficientes. Num apanhado realizado em Fevereiro de 2015, há consenso quanto ao montante em dívida - 323 mil milhões de euros - mas há parcelas que o compõem que são tudo menos esclarecedoras: a) Outros Títulos - 48,8 mil milhões (que títulos e quem os detém?); b) Outros Países da Eurozona - 34,0 mil milhões (que países e que montantes?); c) Outros Empréstimos - 10,5 mil milhões (quem emprestou?); d) Bancos Estrangeiros - 2,4 mil milhões (que bancos e de que nacionalidades?). A Grécia será o país cuja dívida soberana será a que estará a ser publicamente mais escrutinada e, mesmo assim e à primeira vista, não se parece perceber lá muito bem quem detém 30% dela. A Itália não está melhor e Portugal tão pouco. Experimente-se repetir o mesmo exercício de tentar encontrar na internet informação sobre as nacionalidades de quem detenha dívida soberana de outros países dos PIGS (incluindo Portugal) que eu desejo-lhe boa sorte... Quando de um óbito habilitam-se os herdeiros, quando de uma falência fazem-no os credores, mas aqui o que parece vantajoso é deixar correr as coisas (sem que os devedores provoquem ondas de choque por suspenderem os pagamentos) e passar-se desapercebido.
Esta capa de opacidade que cai sobre dados económicos que, por princípio, deviam estar facilmente disponíveis e deviam ser transparentes, lembra-me um episódio que me aconteceu já lá vão muitos anos. Foi um exercício a que me dediquei a partir dos dados daqueles anuários sobre todas as economias mundiais (acima). A partir da constatação que a esmagadora maioria dessas economias registavam deficits nas sua balanças comerciais dei-me à pachorra de as transpor a todas para uma folha de cálculo para verificar se estatisticamente seria verdade aquilo que seria óbvio: que o Mundo teria um comércio externo saldado. Mas não, e a diferença era substantiva, e o mesmo se passava com os saldos agregados das Balanças de Pagamentos¹. Foi um momento revelador do que pode ser a fiabilidade destes dados macroeconómicos. Isso, ou então há comércio externo com a Lua... Mas, regressando à questão inicial, a das dívidas soberanas, aqui põe-se um problema para além da sua adulteração: a sua omissão. E isso torna-se importante para avaliarmos quais os interesses em causa quando das posições antagónicas para a resolução da dívida grega. Há uma reunião para isso hoje: parece haver uma divergência de fundo entre os europeus e o FMI. A posição do FMI parece mais branda, mas a reputação histórica do FMI (de que não facilita nada a ninguém) faz com que eu não acredite em histórias daquelas com índios (maus - alemães) e cow-boys (bons - FMI), conforme nos conta Wolfgang Münchau. Para assertividades dessas creio que nem precisamos de importações da Europa, já cá temos jornalistas económicos como o Camilo Lourenço... O que eu aqui me lamento é que gostaria de ter dados para formar alguma opinião sem depender do que escreve o Münchau. Saber quem deve o quê a quem ajudava. E como não sei e como não sou jornalista e não sou obrigado a mandar palpites mesmo que esteja às escuras, queixo-me e calo-me.
¹ Repetido o exercício com uma listagem de Balanças de Pagamentos mais actualizada (de 2015), ficou por explicar um saldo excedentário que equivale sensivelmente a metade do deficit dos Estados Unidos - acessoriamente o país do mundo com a Balança de Pagamentos mais deficitária segundo os dados da própria CIA.
No caso português o melhor que se consegue é o que está aqui http://www.igcp.pt/fotos/editor2/2016/Apresentaaao_Investidores/IGCP_Investors_20160523.pdf nas pág. 68-70
ResponderEliminarO BCE tem informação mas pouco desagregada https://sdw.ecb.europa.eu/browseChart.do?sk=325.GFS.A.N.AT.W1.S13.S1.C.L.LE.GD.T._Z.XDC_R_GD._T.F.V.N._T&sk=325.GFS.A.N.AT.W2.S13.S1.C.L.LE.GD.T._Z.XDC_R_GD._T.F.V.N._T&REF_AREA=258&node=9485607&DATASET=0&SERIES_KEY=325.GFS.A.N.PT.W1.S13.S1.C.L.LE.GD.T._Z.XDC_R_GD._T.F.V.N._T
Leitor
Consultados os dois sites que me recomendou, não conseguiu perceber do que constava este último do BCE. Quanto ao primeiro, o do IGCP, e se bem percebi o que constava das páginas em referências (corrija-me se estiver enganado), aquilo referir-se-á a uma amostra de 12 mil milhões de euros da nossa dívida. Ora, a última vez que fiz contas o montante da nossa dívida soberana corresponderá a 20X isso.
EliminarParece ser uma tarefa titânica e, no entanto, tem de ser mais fácil do que identificar os detentores das grandes parcelas de capital de uma grande SA.
Obrigado.
ResponderEliminarPara a próxima vez preferia personalizar um pouco mais o agradecimento...
Talvez seja mais fácil e objectivo analizar quem realizou a dívida, quem são os cobradores e quem são os pagantes.
ResponderEliminarCom uma moeda comum supra-nacional (mal engendrada) e uma dívida dita, ainda, nacional (embora de ex-nações) a nacionalidade dos credores é múltipla, difusa entre instituições, elas mesmas, multinacionais.
A nacionalidade dos devedores, essa, é clara.
Resta registar quem foram os nacionais que contrairam a dívida, em nome de quem. Sabe-se, mas é tabú.
Por outro lado os representantes dos credores, os homenzinhos de fraque, são claramente os funcionários da dita UE.
Naçionalidades?. Apenas aguerridos investidores/financeiros de um lado. E devedores/contribuintes, nacionais, à força, do outro. JS