Situada em plena Baía de Bengala no Oceano Índico, a ilha Sentinela do Norte faz parte do arquipélago das Ilhas Andamão. O nome foi inspirar-se à sua localização geográfica, em que emparelha com outra ilha baptizada (previsivelmente) de Sentinela do Sul, enquadrando ambas a Passagem Duncan, um estreito de 48 km que separa as ilhas da Grande e da Pequena Andamão. Uma toponímia destas faz perceber a sua origem europeia recente. Com apenas 72 km² e situada numa região sem qualquer interesse económico a primeira referência ocidental (britânica) que se lhe conhece data de 1771. Os britânicos instalaram-se na Grande Andamão em 1789 mas, significativamente, foram-se embora em 1796, tal eram as condições e o clima. E quando regressaram ao arquipélago em 1858, também significativamente, foi para ali instalar uma colónia penal. Mais do que um contacto deliberado o que por vezes acontecia é que um naufrágio forçava o contacto entre os náufragos e as populações indígenas. Assim aconteceu na ilha Sentinela do Norte em 1867 com um navio britânico e cerca de uma centena de sobreviventes. Alguns dias depois, enquanto aguardavam socorro, foram atacados por guerreiros nus armados de lanças com pontas de ferro. Salvaram-se, mas o episódio e as tentativas de contacto – sempre goradas – que se seguiram durante as duas últimas décadas do Século XIX fizeram com que os sentineleses adquirissem uma reputação de ferocidade numa região que já de si nunca fora particularmente acolhedora. Mais do que isso, de uma ferocidade misteriosa. A ilha que, como se referiu, não é particularmente extensa (72 km² – a área de um concelho urbano como o de Almada ou da Trofa), apresenta-se totalmente coberta por uma vegetação densa como se vê pelas fotografias abaixo. Não possui um porto natural nem tão pouco enseadas abrigadas, muito pelo contrário, está rodeada de uma cadeia de recifes que dificulta a navegação costeira e a aproximação.
Assente numa placa tectónica instável, o sismo que provocou o tsunami de 2004, elevou recentemente a ilha em um ou dois metros, fazendo emergir a região dos recifes adjacentes e aumentando a área da ilha, que aparece na fotografia acima da direita em claro, por agora ainda não coberta de vegetação. O ponto mais elevado da ilha tem cerca de 100 metros de altitude. Sobre a população sabe-se muito pouco, a começar por se desconhecer quantos são. Durante o período do raj britânico e por ocasião do censo de 1901 alguém se lembrou de inventar que a tribo tinha 117 membros. Em 1911 continuavam os mesmos 117 e em 1921 perpetuavam-se. Em 1931 um recenseador mais consciencioso (ou menos imaginativo) reduziu esse número para 70. Na verdade nunca se soube nem hoje se sabe. As copas da floresta não os permitem contar nem sequer fazer uma estimativa pelo número de habitações. O que se sabe é aquilo que eles compartilham com as outras tribos indígenas das Andamão das quais se separaram em algum momento do passado. Pela aparência, os sentineleses são negritos. Os negritos terão sido os primeiros habitantes da Ásia chegados há uns 60.000 anos. Hoje o grupo sobrevive de forma identificável pelos seus traços morfológicos principais – nomeadamente a estatura baixa, a cor da pele que lhes dá o nome e a esteatopigia (acumulação de gordura nas nádegas) – apenas em tribos isoladas de alguns países asiáticos, não só na Índia, mas também na Tailândia, na Malásia, na Indonésia ou nas Filipinas. No caso concreto dos negritos que habitam desde há dezenas de milhares de anos as ilhas Andamão, os estudos de DNA indiciam que se terão começada a individualizar dos restantes há um pouco menos de 50.000 anos. Havia uns 5.000 em todo o arquipélago no Século XIX. As tribos de negritos que habitavam as outras ilhas das Andamão sabiam da existência dos sentineleses, mas, nos tempos históricos, estes nunca terão sentido necessidade de romper o seu isolamento. Sabe-se que constroem canoas e praticam a pesca mas costeira. Não se sabe se perderam ou se abdicaram voluntariamente do conhecimento da navegação a mais longas distâncias – a verdade é que foi navegando que eles foram parar à ilha que habitam. Desconhece-se a circunstância em que isso aconteceu. E também é verdade que o território que ocupam está, pela sua própria natureza insular, limitado quanto ao número de pessoas que pode sustentar.
Também não se sabe que acontecimentos terão estado na origem de tão manifesta hostilidade para com os forasteiros, embora se desconfie, que os contactos com o exterior não se circunscreverão aos que estão documentados, e que o passado possa estar recheado de episódios de violência entre os autóctones e tripulações de navios de passagem. O que se deduz, mais do que saber-se, é que os sentineleses como as outras tribos originais de Andamão, viverão da caça, pesca e recolecção como o fazem as tribos das ilhas adjacentes, desde há milhares de anos. O seu isolamento não pode ter sido total: por exemplo, de algum modo eles aprenderam a funcionalidade do ferro que empregam nas suas lanças e de algum modo o obtiveram. Uma dessas vezes é conhecida, quando uma embarcação moderna acabou por naufragar na costa e os sentineleses assaltaram a carcaça encalhada para obter o ferro que não conseguem produzir. Uma das gulodices mais apreciadas por eles são os cocos (numa das fotografias abaixo – com teleobjectiva – aparece uma mulher da tribo a apanhar um que lhes foi oferecido), que paradoxalmente não existem na ilha apesar da exuberância botânica (a plantação de coqueiros está muito para além das capacidades técnicas daquela sociedade, seria fazê-los evoluir da recolecção para a agricultura). A escassa rentabilidade da recolecção por hectare é um factor que limita as estimativas da população de sentineleses; em sentido inverso, sabe-se que um número demasiado baixo de habitantes acentuará os inconvenientes da consanguinidade da população, nomeadamente a esterilidade. As estimativas são várias e vão dos 50 aos 400 habitantes com as mais razoáveis a situarem-se num intervalo entre 100 e 200. Tendo sido muito pouco estudada, mesmo assim sabe-se alguma coisa da cultura dos sentineleses. Um antropólogo indiano chamado Trilokinath Pandit passou anos a tentar contactá-los apesar da hostilidade demonstrada. Houve muitos fracassos. Só se conseguiram resultados há uns 25 anos (1991-93).
Pandit desistiu de levar óculos e relógio para os cautelosos encontros, pois os precavidos sentineleses obrigavam-no a despojar-se de tudo, roupa incluída, já que pelos seus padrões de nudez, roupa e adereços só poderiam ser um pretexto para esconder algo. Apesar de não se conseguir comunicar fluentemente com eles, já que a língua local deixou de ser inteligível com as das outras tribos conhecidas, Pandit conseguiu aperceber-se que a estrutura da sua sociedade é do mais simplificada que há: não há chefe político nem religioso. A sua forma de expressão artística preferida é a pintura corporal: esfregaços ondulados em branco ou ocre. A sua música é rudimentar, as suas canções usam apenas duas notas e acontece o mesmo com a aritmética: há a designação para o número um, para o número dois e para o número muitos. Limitação importante para o seu quotidiano: sabem a importância do fogo mas não o sabem fazer, por isso muita atenção é dada à tarefa de o preservar continuamente. A decisão das autoridades indianas depois daquela série preliminar de estudos foi a de manter a tribo isolada de contactos do exterior. Os contactos de Pandit não alteraram o comportamento hostil dos sentineleses para com outros intrusos. Quando do tsunami de 2004 que, como se viu mais acima, também atingiu a ilha, um helicóptero militar indiano, que viera investigar como a tribo fora afectada pela catástrofe, acabou recebido à pedrada. Dois pescadores indianos que estavam a pescar ilegalmente perto da ilha e que acabaram por ser arrastados para uma das suas praias foram assassinados. Episódios como esses servem para que a espectacularidade e o absurdo se sobreponha ao científico – ainda faltava ver os sentineleses acusados de canibalismo, mas agora já não. Mas o que me ocorre a respeito da situação é uma extrapolação que nada tem directamente a ver com os próprios. O que se observa nesta questão da ilha Sentinela do Norte é uma diferença tecnológica de milhares de anos entre duas civilizações. O hiato é tão grande que as autoridades indianas preferiram deixar os sentineleses entregues a si próprios, num regime jurídico de autonomia política de que nem os próprios se aperceberão. Ora isso seria um cenário parecido ao de uma qualquer civilização extraterrestre que nos contactasse. Como a da Índia, a sua benignidade para connosco seria feita de condescendência. O que é espectacular é como a ficção de Hollywood ainda nos consegue persuadir em filmes descabelados que poderíamos defrontar frontalmente e em pé de igualdade tecnologias que nos superariam por milhares de anos.
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