29 fevereiro 2016

OS NOSSOS AMIGOS ALEMÃES

Mario Luciolli (1910-1988) foi um quase anónimo diplomata italiano cuja carreira começou em 1933, ainda antes da Segunda Guerra Mundial. Paradoxalmente ou talvez não, considerado o teor deste poste, a única entrada que dele consta na Wikipedia está redigida em alemão. De um percurso feito, como um diplomata de carreira, das colocações nos locais mais díspares - Suíça (1934-36), França (1936-38), Austrália (1940-40), Alemanha (1940-42), Espanha (1943-44), Estados Unidos (1948-55), Chile (1955-61), Turquia (1961-64) e final e novamente a Alemanha, agora como embaixador (1964-75) - o período a que o próprio atribuiu mais interesse terão sido os seus primeiros anos, sobre os quais ele escreveu o livro acima. Do seu espólio desses anos faz parte um relatório cujo transcorrer dos anos tem vindo a tornar progressivamente mais interessante. Elaborado depois da sua chegada a Roma recém-vindo de Berlim em 1942, durante a vigência do famoso Pacto de Aço que unia a Itália à Alemanha e imediatamente depois da expansão da Guerra à União Soviética e aos Estados Unidos (segundo semestre de 1941), os seus pensamentos sobre a forma como o aliado da Itália estava a lidar com as questões levantadas pela globalização do conflito tiveram um sucesso tal na diplomacia italiana da época que o seu memorando acabou sobre a secretária do próprio Benito Mussolini. Que o acolheu comentando que há muito tempo (...) não lia nada (de) tão significativo e acutilante. O documento, naturalmente classificado e redigido por um profissional arguto com um pouco mais de 30 anos, conseguirá, por causa da idade do redator, combinar a maturidade técnica e a honestidade das opiniões que exprime com a falta de maturidade política quanto os risco das implicações para a sua carreira futura em as manifestar. Continha passagens que têm uma ressonância estranhamente actual, 75 anos depois:
Defender até à morte o muito que até agora foi conquistado, explorá-lo, organizar a vida económica e política da Europa a fim de lhe aumentar a força de resistência e desenvolver as suas capacidades ofensivas - tudo isto parece capaz de constituir um objectivo claro e rigoroso, um programa que pode colher aderentes e consenso, não fora o facto de ser precisamente nesta missão política que a Alemanha mostra, de forma decisiva e obstinada, não estar à altura da sua tarefa.
A enfática decisão alemã de organizar a Europa de forma hierárquica, como uma pirâmide com a Alemanha no topo, é bem conhecida. No entanto, isto não capta a abordagem do regime aos problemas da reconstrução europeia. Em nenhum país, nem naqueles que até há pouco tinham uma clara atitude anti-alemã, havia falta de personalidades e correntes políticas dispostas a admitir que a ordem internacional que emergiu da Revolução Francesa e que culminou em Versailles foi definitivamente ultrapassada e que os Estados-nação teriam de dar lugar a entidades políticas muito maiores... Assim, o conceito de uma organização hierárquica da Europa não era, em si mesmo, inaceitável. Contudo, aquilo que salta à vista a qualquer pessoa que contacte com os alemães é a sua concepção puramente mecânica e materialista da ordem europeia. Para eles, organizar a Europa significa decidir que quantidade de determinada matéria-prima deve ser produzida e quantos trabalhadores devem ser utilizados. Não admitem que uma ordem económica possa funcionar sem se basear numa ordem política, e pensam que para fazer trabalhar o operário belga ou boémio não basta apenas prometer-lhe um certo salário, mas é também necessário incutir-lhe o sentido de estar a servir uma comunidade, da qual ele é parte integrante, com a qual sente uma afinidade e na qual se reconhece
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A avaliação de Mario Luciolli, a esta distância dos acontecimentos e conhecida a evolução que a Europa sofreu depois daí, oferece-se a um potencial infindo de comentários. Se calhar, haverá muito quem considere que o que ali se escreve nem estará assim tão desactualizado, apesar do texto estar prestes a celebrar as sua bodas de diamante. Repare-se que as críticas não se dirigem ao europeísmo enquanto objectivo, mas aos métodos desastrados dos alemães para o alcançar. Luciolli ficou com a reputação de entender os alemães, fama que virá a ser coroada com uma colocação de onze anos em Bona. A via que eu quero explorar, porém, é a de ver nos italianos, mais do que o despeito de um parceiro em pé de igualdade que só o era na teoria, a sabedoria milenar e intuitiva vinda dos seus antepassados romanos de que uma hegemonia continental se faz não só de pão mas também de circo. E que terá sido a conjugação dos dois que fez o seu império (romano) durar cerca de cinco séculos. Ora os alemães não parecem perceber isso. Deve ser genético. Eu ainda sou do tempo em que, sem precisar de o fazer, o comissário Lorenzo Natali (acima, não por acaso um italiano...) nos fazia uma campanha de charme antes da nossa adesão à CEE ao som da música da Ode à Alegria de Beethoven, transformada em hino europeu. Hoje isso são memórias, Há que reconhecer que depois da reunificação alemã e do estabelecimento progressivo da sua hegemonia dentro da União (1990) cada vez se ouve menos aquela música alemã e cada vez se ouvem mais discursos (...descomposturas) em alemão...  

¹ Transcrito e traduzido em Mark Mazower, O Continente das Trevas, pp. 170-1

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