05 abril 2010

DEMÉTRIO, O FALSO CZAR

Serão raros os países que se podem orgulhar de ter tido por soberano um genuíno usurpador. Na multimilenar história da China isso aconteceu por algumas vezes. Em Roma, o novo Imperador reclamava-se de um parentesco fictício com o seu antecessor, adoptando os seus nomes de família, mas tratava-se apenas de uma formalidade. Mas na Rússia houve quem se apropriasse do poder e tivesse subido ao trono passando-se por alguém que efectivamente morrera. Teria sido como se, entre nós, um qualquer Dom Sebastião tivesse mesmo aparecido numa certa manhã de nevoeiro… e tivesse mesmo retomado o trono.

Mas, para contar a história como deve ser há que recuar no tempo e ir até ao reinado do czar russo Ivan IV (1530-1584), mais conhecido por Ivan o Terrível (acima). Embora o seu cognome não tenha esse mesmo sentido em russo, Ivan tinha mesmo um mau feitio terrível. Tanto que casou com oito mulheres ao longo da sua vida e, certo dia, numa discussão em que começara por pontapear a nora que estava grávida (e que acabou por abortar…), veio a matar o seu filho e herdeiro Ivan (1554-1581) num ataque de raiva. O que criou um problema de sucessão: Ivan tinha mais dois filhos, mas nenhum preparado para o trono…
O mais velho, Feodor (1557-1598), que se veio a tornar czar em 1584, não tinha perfil nem, apesar do casamento, herdeiros. O mais novo, Demétrio (1582-1591), ainda era um bebé de dois anos quando o pai morreu, além de ser epiléptico. Mas seria o herdeiro do trono no caso do irmão morrer sem descendência. Aí surge a questão das ambições do homem forte por detrás do trono de Feodor, o seu cunhado Boris Godunov (acima). Demétrio fora exilado com sua mãe (de um clã rival aos Godunov) para Uglitch quando em 1591 chegaram à corte as notícias que Demétrio morrera num acidente. Suspeitou-se de Boris Godunov…

Porém, quando Feodor morreu, Boris Godunov (1551-1605) só se tornou czar depois de convocar as Cortes (Zemsky Sobor) que o confirmaram com o direito ao trono. Mas o reinado do czar Boris I foi curto (1598-1605) e turbulento. E é aqui que entra o falso Demétrio… Como se vê pelo mapa abaixo, a grande potência eslava da época ainda não era a Rússia, mas a Polónia que, aliada a um Grão Ducado que se chamava Lituânia mas que era composto maioritariamente por eslavos ocidentais (bielorrussos e ucranianos), dominava a Europa de Leste. E essa Mega-Polónia mostrava ambições expansionistas ainda mais para Leste…
Membros ambiciosos da nobreza polaca nem pensaram duas vezes quando se tratou de apoiar as pretensões de um aventureiro que apareceu por essa época e que pretendia ser Demétrio, o filho sobrevivente de Ivan o Terrível que afinal sobrevivera à tentativa de assassinato em Uglitch. A Rússia, que já estava dividida entre duas facções (pró e anti-Godunov), mais debilitada ficou militarmente com a morte de Boris em Abril de 1605. Dois meses depois disso Demétrio entrava triunfalmente em Moscovo à frente de um exército de descontentes e de polacos, executando o jovem Feodor II (1589-1605), o filho sucessor de Boris.

Mas Demétrio tinha uma factura a pagar e com ela vinha uma ocidentalização dos costumes que foi um dos aspectos mais importantes nas críticas aos recém-chegados. Demétrio casou com uma princesa polaca, Marina Mniszech (1588-1614), a filha de um dos seus patrocinadores, que não teve de se converter à fé ortodoxa apesar de czarina e que espantou o povo pelos seus fatos à polaca (abaixo), i.e., com a cintura marcada, gola de preguinhas plissadas à volta do pescoço e o cabelo apanhado, descobrindo a cara. Pior, vindos no seu séquito, havia padres jesuítas que celebravam missa no interior do Kremlin – uma blasfémia!
Embora se tenha a certeza que Demétrio não era o Demétrio que ele reclamava ser, hoje não há possibilidades de se saber quem seria ele na realidade. Especulou-se que seria russo (o que é mais provável), polaco, lituano, turco e até italiano. A verdade é que a importância do seu reinado verdadeiro sob uma identidade falsa foi mínima. Terminou em Maio de 1606 com uma revolta em Moscovo semelhante àquela que lhe dera o poder onze meses antes, só que agora era fomentada e guarnecida pela nobreza russa. Demétrio tentou fugir, saltou de uma janela, partiu uma perna e foi executado no local onde caíra…

Assim terá morrido literal e socialmente o que se poderá considerar o equivalente russo do nosso contemporâneo sebastianismo

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