A pretexto da morte do protagonista, republico um texto a respeito de Pervez Musharraf, originalmente aqui publicado a 12 de Julho de 2007
Há notícias interessantes e há notícias importantes. Da combinação destes dois atributos resultam quatro resultados e uma regra, não escrita, que estabelece que a grande maioria das notícias interessantes não são importantes e que a grande maioria das notícias importantes não são interessantes. Também há as que não são uma coisa nem outra, e nisso estou, por exemplo, com Mika Brzezinski e com a sua opinião sobre a notícia da saída de Paris Hilton da prisão…
Mas o que me deixa mais intrigado são os casos em que não são exploradas daquelas raras notícias que são ao mesmo tempo interessantes e importantes, como foi o caso da ordem dada pelo general Pervez Musharraf para que o Exército paquistanês procedesse ao assalto da mesquita Lal Masjid de Islamabad, onde se tinham entrincheirado um largo grupo de radicais islâmicos. Desencadeado na Terça-Feira passada, ainda hoje se especula qual terá sido o número total de mortos causados pela operação.
Os ataques a locais onde fanáticos religiosos estavam entrincheirados foram acontecimentos que sempre saíram bem na televisão. Foi o caso do assalto do FBI ao rancho em Waco no Texas, onde se refugiaram os seguidores da seita de David Korresh, que decidiram imolar-se lançando fogo às instalações. Também foram acontecimentos importantes pelas suas consequências, como foi o caso do assalto pelo Exército indiano ao Templo Dourado em Amritsar, lugar sagrado para os sikhs.
É por isso curioso a ausência de atenção dedicada a um daqueles acontecimentos raros, ao mesmo tempo tão interessante quanto importante. E Pervez Musharraf, presidente do Paquistão e comandante-chefe das suas Forças Armadas é o homem chave de toda esta situação complicada, desencadeada sob sua responsabilidade (Ayman Al-Zawahiri o rosto da Al-Qaeda nos tempos que correm já apareceu em vídeo a condená-lo), num país cuja coesão interna sempre foi o seu maior problema.
Nunca é demais recordar que o Paquistão resulta das províncias do Império das Índias britânicas, onde havia uma maioria de população muçulmana. É um co-herdeiro, com a União Indiana (e depois de 1971, com o Bangladesh), da identidade regional estabelecida pelos britânicos para toda aquela região. Aliás, o rio Indo, de onde os gregos e depois os europeus retiraram o nome que empregam para designar o subcontinente (a designação equivalente em hindi é Bharat), corre em território paquistanês…
De uma forma sintética, o grande problema do Paquistão, quando em comparação com os seus vizinhos do subcontinente, é que, com mais de 150 milhões de habitantes, a sua população não é tão homogénea quanto a do Bangladesh (150 milhões, uma esmagadora maioria deles muçulmanos de cultura bengali), nem tão heterogénea quanto a da Índia (1.120 milhões, distribuídos por 28 estados e 7 territórios, com 18 idiomas oficiais entre 1.650 línguas utilizadas…), o que impossibilita a ascensão de um só grupo dominante.
No Paquistão há quatro (e meia…) regiões históricas: Punjab, Sind, Baluchistão e (usando ainda a designação colonial britânica) a Província da Fronteira de Noroeste, cujo acrónimo em inglês correntemente usado é NWFP. A meia região histórica mencionada acima é a parcela de Caxemira controlada pelo Paquistão (cuja maior parte está sob controle indiano), numa disputa de 1947 ainda hoje por resolver. Há ainda os territórios do Norte, da capital federal (Islamabad) e o Território Federal das Áreas Tribais.
Mais de 75% da população paquistanesa vive ao longo do vale do Indo e seus afluentes, que são as áreas mais férteis do país, onde se situam as províncias do Punjab e do Sind. Foi para melhor protecção destas regiões férteis que os britânicos se decidiram a controlar as regiões adjacentes do Baluchistão, da Fronteira Noroeste e das Áreas Tribais (ver mapas) onde se situavam os corredores naturais de invasão da Índia. O problema eram os habitantes desses corredores naturais…
A presença britânica naquelas regiões acabou por ser, por assim dizer, muito pouco presente. Aliás, a designação (que se mantém) em inglês do Território Federal das Áreas Tribais (Federally Administered Tribal Areas – FATA) dá-nos uma indicação como as áreas são e eram administradas - a nível federal, longínquo… Outra pista é-nos dada pela manutenção da palavra fronteira na designação (que também se manteve) da Província da Fronteira de Noroeste (NWFP), numa indicação da sua funcionalidade para a Índia britânica…
Outro exemplo, foi em Quetta, capital do Baluchistão que os britânicos decidiram instalar em 1907 o prestigiado Instituto de Comando e Estado-Maior (Command & Staff College) do Exército britânico das Índias. Os alunos do Instituto não teriam de se deslocar para muito longe nas suas semanas de campo, especialmente quando o assunto era contra-subversão, campo onde o Instituto era muito prestigiado, tendo sido pioneiro, na década de 1920, da doutrina de emprego de meios aéreos no apoio à contra-subversão...
O dilema de qualquer governante paquistanês desde 1947 tem sido o de fazer a síntese entre as várias expressões de Paquistão. Há esta fracção ora descrita, minoritária mas que sempre foi muito insubmissa e militante, que está mais vocacionada para o vizinho ocidental – o Afeganistão – com quem tem aliás parentescos étnicos. Há também a fracção maioritária, mais sedentária e menos exuberante, nas províncias maiores do Pundjab e do Sind, embora ela também esteja dividida por divisões culturais.
O (escasso) rotativismo eleitoral que o Paquistão já teve, funcionou à volta de duas famílias de latifundiários do Punjab (os Sharif) e do Sind (os Bhutto). Qualquer mapa dos resultados eleitorais mostra que, dada a concentração regional dos votos, a vitória de qualquer um deles foi também a vitória de uma das duas principais regiões constituintes do Paquistão sobre a outra. Dada a ausência de práticas democráticas, o favorecimento de uma das facções cria, a prazo, uma enorme pressão na coesão nacional paquistanesa.
Aqueles que se consideram os verdadeiros intérpretes do ideal paquistanês são aqueles que imigraram para o Paquistão em 1947, quando da Partição, e que são conhecidos pela designação de mohajirs. Embora estejam, com os descendentes, estimados em apenas 4 a 7% da população total, a sua importância social é desmesuradamente muito superior ao seu peso social: Pervez Musharraf é um deles (nasceu em Nova Deli, na Índia), controlam economicamente Karachi, a capital económica do país e administrativamente o aparelho de estado.
São também eles os defensores da manutenção do urdu (a par do inglês) como idioma oficial do Paquistão. O urdu, actualmente conhecido através do sistema escolar por mais de 25% dos paquistaneses mas que não é o idioma nativo de qualquer dos povos que hoje pertencem ao Paquistão, é a versão islamizada do hindi, a língua oficial (também a par do inglês) da União Indiana. Apesar de escritas em alfabetos diferentes elas são inteligíveis e é por isso que a televisão indiana e os filmes de Bollywood* podem ser tão populares no Paquistão…
Mas, se as classes instruídas não se têm mostrado, na generalidade, hostis ao desempenho de Musharraf, também vieram a mostrar recentemente, através de manifestações colectivas que parecem ter bloqueado a tentativa de Musharraf de afastar o juiz Iftikhar Mohammad Chaudhry do Supremo Tribunal, que consideram que devem existir limites para o poder presidencial e que o Paquistão não deve ter à sua frente um déspota oriental como acontece normalmente com os outros países islâmicos da região.
Por causa das condições que presidiram ao seu nascimento em 1947, o Islão tem de ser sempre um componente indispensável à identidade nacional paquistanesa. Mas, como nas receitas, ele tem de ser em quantidade q.b. (quanto baste). Nada dos exageros produzidos pelas madrassas radicais das províncias marginais do Paquistão. Houve tempos, no passado, em que esses radicais foram activos de uma política externa dinâmica do Paquistão junto dos países vizinhos (Afeganistão ou Caxemira).
Agora, tornaram-se em passivos, numa chatice. Podem servir de apoio parlamentar às ficções eleitorais do regime de Musharraf mas as proezas de realizar atentados contra comboios indianos em Bombaim ou de dar apoio logístico a guerrilheiros empenhados em combate contra forças da NATO são gestos capazes de provocar a ponderação das autoridades paquistanesas sobre os benefícios recíprocos do entendimento... Embora desencadear a ruptura também tenha os seus riscos, sendo um deles o da decomposição do próprio Paquistão entre os das montanhas e e os dos rios.
Nesse eventual cenário, a Índia, que teria delirado há 20 anos com um desfecho desses, hoje tem de ter a preocupação de acautelar em quais das parcelas ficariam os detonadores das bombas atómicas… Há duas coisas que parecem certas: a política paquistanesa não se pode desviar muito das condicionantes que aqui tracei e elas manter-se-ão, qualquer que seja o protagonista, e o general estaria, de certeza, muito consciente de todas as implicações associadas à sua ordem de ataque à mesquita Lal Masjid na passada Terça-Feira…
* Trocadilho com Hollywood, referindo-se às produções de cinema indiano feitas em Bombaim, faladas em hindi e também em urdu. Curiosamente, o idioma popular em Bombaim não é o hindi, mas sim o marathi.
Mas o que me deixa mais intrigado são os casos em que não são exploradas daquelas raras notícias que são ao mesmo tempo interessantes e importantes, como foi o caso da ordem dada pelo general Pervez Musharraf para que o Exército paquistanês procedesse ao assalto da mesquita Lal Masjid de Islamabad, onde se tinham entrincheirado um largo grupo de radicais islâmicos. Desencadeado na Terça-Feira passada, ainda hoje se especula qual terá sido o número total de mortos causados pela operação.
Os ataques a locais onde fanáticos religiosos estavam entrincheirados foram acontecimentos que sempre saíram bem na televisão. Foi o caso do assalto do FBI ao rancho em Waco no Texas, onde se refugiaram os seguidores da seita de David Korresh, que decidiram imolar-se lançando fogo às instalações. Também foram acontecimentos importantes pelas suas consequências, como foi o caso do assalto pelo Exército indiano ao Templo Dourado em Amritsar, lugar sagrado para os sikhs.
É por isso curioso a ausência de atenção dedicada a um daqueles acontecimentos raros, ao mesmo tempo tão interessante quanto importante. E Pervez Musharraf, presidente do Paquistão e comandante-chefe das suas Forças Armadas é o homem chave de toda esta situação complicada, desencadeada sob sua responsabilidade (Ayman Al-Zawahiri o rosto da Al-Qaeda nos tempos que correm já apareceu em vídeo a condená-lo), num país cuja coesão interna sempre foi o seu maior problema.
Nunca é demais recordar que o Paquistão resulta das províncias do Império das Índias britânicas, onde havia uma maioria de população muçulmana. É um co-herdeiro, com a União Indiana (e depois de 1971, com o Bangladesh), da identidade regional estabelecida pelos britânicos para toda aquela região. Aliás, o rio Indo, de onde os gregos e depois os europeus retiraram o nome que empregam para designar o subcontinente (a designação equivalente em hindi é Bharat), corre em território paquistanês…
De uma forma sintética, o grande problema do Paquistão, quando em comparação com os seus vizinhos do subcontinente, é que, com mais de 150 milhões de habitantes, a sua população não é tão homogénea quanto a do Bangladesh (150 milhões, uma esmagadora maioria deles muçulmanos de cultura bengali), nem tão heterogénea quanto a da Índia (1.120 milhões, distribuídos por 28 estados e 7 territórios, com 18 idiomas oficiais entre 1.650 línguas utilizadas…), o que impossibilita a ascensão de um só grupo dominante.
No Paquistão há quatro (e meia…) regiões históricas: Punjab, Sind, Baluchistão e (usando ainda a designação colonial britânica) a Província da Fronteira de Noroeste, cujo acrónimo em inglês correntemente usado é NWFP. A meia região histórica mencionada acima é a parcela de Caxemira controlada pelo Paquistão (cuja maior parte está sob controle indiano), numa disputa de 1947 ainda hoje por resolver. Há ainda os territórios do Norte, da capital federal (Islamabad) e o Território Federal das Áreas Tribais.
Mais de 75% da população paquistanesa vive ao longo do vale do Indo e seus afluentes, que são as áreas mais férteis do país, onde se situam as províncias do Punjab e do Sind. Foi para melhor protecção destas regiões férteis que os britânicos se decidiram a controlar as regiões adjacentes do Baluchistão, da Fronteira Noroeste e das Áreas Tribais (ver mapas) onde se situavam os corredores naturais de invasão da Índia. O problema eram os habitantes desses corredores naturais…
A presença britânica naquelas regiões acabou por ser, por assim dizer, muito pouco presente. Aliás, a designação (que se mantém) em inglês do Território Federal das Áreas Tribais (Federally Administered Tribal Areas – FATA) dá-nos uma indicação como as áreas são e eram administradas - a nível federal, longínquo… Outra pista é-nos dada pela manutenção da palavra fronteira na designação (que também se manteve) da Província da Fronteira de Noroeste (NWFP), numa indicação da sua funcionalidade para a Índia britânica…
Outro exemplo, foi em Quetta, capital do Baluchistão que os britânicos decidiram instalar em 1907 o prestigiado Instituto de Comando e Estado-Maior (Command & Staff College) do Exército britânico das Índias. Os alunos do Instituto não teriam de se deslocar para muito longe nas suas semanas de campo, especialmente quando o assunto era contra-subversão, campo onde o Instituto era muito prestigiado, tendo sido pioneiro, na década de 1920, da doutrina de emprego de meios aéreos no apoio à contra-subversão...
O dilema de qualquer governante paquistanês desde 1947 tem sido o de fazer a síntese entre as várias expressões de Paquistão. Há esta fracção ora descrita, minoritária mas que sempre foi muito insubmissa e militante, que está mais vocacionada para o vizinho ocidental – o Afeganistão – com quem tem aliás parentescos étnicos. Há também a fracção maioritária, mais sedentária e menos exuberante, nas províncias maiores do Pundjab e do Sind, embora ela também esteja dividida por divisões culturais.
O (escasso) rotativismo eleitoral que o Paquistão já teve, funcionou à volta de duas famílias de latifundiários do Punjab (os Sharif) e do Sind (os Bhutto). Qualquer mapa dos resultados eleitorais mostra que, dada a concentração regional dos votos, a vitória de qualquer um deles foi também a vitória de uma das duas principais regiões constituintes do Paquistão sobre a outra. Dada a ausência de práticas democráticas, o favorecimento de uma das facções cria, a prazo, uma enorme pressão na coesão nacional paquistanesa.
Aqueles que se consideram os verdadeiros intérpretes do ideal paquistanês são aqueles que imigraram para o Paquistão em 1947, quando da Partição, e que são conhecidos pela designação de mohajirs. Embora estejam, com os descendentes, estimados em apenas 4 a 7% da população total, a sua importância social é desmesuradamente muito superior ao seu peso social: Pervez Musharraf é um deles (nasceu em Nova Deli, na Índia), controlam economicamente Karachi, a capital económica do país e administrativamente o aparelho de estado.
São também eles os defensores da manutenção do urdu (a par do inglês) como idioma oficial do Paquistão. O urdu, actualmente conhecido através do sistema escolar por mais de 25% dos paquistaneses mas que não é o idioma nativo de qualquer dos povos que hoje pertencem ao Paquistão, é a versão islamizada do hindi, a língua oficial (também a par do inglês) da União Indiana. Apesar de escritas em alfabetos diferentes elas são inteligíveis e é por isso que a televisão indiana e os filmes de Bollywood* podem ser tão populares no Paquistão…
Mas, se as classes instruídas não se têm mostrado, na generalidade, hostis ao desempenho de Musharraf, também vieram a mostrar recentemente, através de manifestações colectivas que parecem ter bloqueado a tentativa de Musharraf de afastar o juiz Iftikhar Mohammad Chaudhry do Supremo Tribunal, que consideram que devem existir limites para o poder presidencial e que o Paquistão não deve ter à sua frente um déspota oriental como acontece normalmente com os outros países islâmicos da região.
Por causa das condições que presidiram ao seu nascimento em 1947, o Islão tem de ser sempre um componente indispensável à identidade nacional paquistanesa. Mas, como nas receitas, ele tem de ser em quantidade q.b. (quanto baste). Nada dos exageros produzidos pelas madrassas radicais das províncias marginais do Paquistão. Houve tempos, no passado, em que esses radicais foram activos de uma política externa dinâmica do Paquistão junto dos países vizinhos (Afeganistão ou Caxemira).
Agora, tornaram-se em passivos, numa chatice. Podem servir de apoio parlamentar às ficções eleitorais do regime de Musharraf mas as proezas de realizar atentados contra comboios indianos em Bombaim ou de dar apoio logístico a guerrilheiros empenhados em combate contra forças da NATO são gestos capazes de provocar a ponderação das autoridades paquistanesas sobre os benefícios recíprocos do entendimento... Embora desencadear a ruptura também tenha os seus riscos, sendo um deles o da decomposição do próprio Paquistão entre os das montanhas e e os dos rios.
Nesse eventual cenário, a Índia, que teria delirado há 20 anos com um desfecho desses, hoje tem de ter a preocupação de acautelar em quais das parcelas ficariam os detonadores das bombas atómicas… Há duas coisas que parecem certas: a política paquistanesa não se pode desviar muito das condicionantes que aqui tracei e elas manter-se-ão, qualquer que seja o protagonista, e o general estaria, de certeza, muito consciente de todas as implicações associadas à sua ordem de ataque à mesquita Lal Masjid na passada Terça-Feira…
* Trocadilho com Hollywood, referindo-se às produções de cinema indiano feitas em Bombaim, faladas em hindi e também em urdu. Curiosamente, o idioma popular em Bombaim não é o hindi, mas sim o marathi.
Eis um post muito importante, pela sua oportunidade e pelo que nos transmite de forma sucinta, sobre o emaranhado políco-social do Paquistão, tão marcado pelos acontecimentos que caracterizaram as suas origens.
ResponderEliminarObrigado pelo coentário, ls.
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