16 junho 2024

UMA VIAGEM AO PASSADO FALANDO SOBRE «A BOLHA» DOS CONSPIRADORES PROFISSIONAIS REVOLUCIONÁRIOS

Muito me surpreenderá se houver um leitor do Herdeiro de Aécio que reconheça a pessoa do retrato acima. A Wikipedia resolve o problema: trata-se de Filippo Buonarroti (1761-1837), que a página respectiva descreve como um «revolucionário e teórico socialista italiano radicado em França». Quanto ao retrato, a Wikipedia não esclarece, mas ele foi pintado por Philippe Auguste Jeanron (1808-1877). A acção predominante de Buonarroti foi, porém, em França, onde ele se tornou conhecido por ser um dos activistas mais radicais no período mais dinâmico da Revolução Francesa (1791-1797), é considerado alguém muito próximo do proto-comunista François Noël Babeuf (1760-1797), que veio a morrer na guilhotina em resultado de uma conspiração - conhecida pela Conspiração dos Iguais - intentada contra o governo do Directório. Apesar de envolvido na conspiração, Buonarroti sobreviveu com uma pena de desterro e é como teórico - mas sempre conspirador - que ele se vem a tornar famoso, quando publica em 1828 o livro acima: Conspiração para Igualdade dita de Babeuf. Repare-se o pormenor que o livro foi editado em Bruxelas, que fazia parte então do Reino dos Países Baixos e onde Buonarroti estava então exilado. A obra foi muito bem acolhida, nomeadamente por teóricos revolucionários de gerações posteriores, os casos mais notáveis de Marx, Engels, Bakunin e Trotsky, todos eles produziram textos com referências elogiosas a Buonarroti. Preso por uma última vez ainda em Paris, em Outubro de 1833, aos 72 anos, Buonarroti vem a falecer cego na mesma cidade em 1837. Com esta história de vida, é considerado o percursor dos conspiradores profissionais que sacrificaram toda a sua vida pela luta por uma causa. Mas, remetido para aquela categoria implacável e talvez simplista de socialista utópico com que estes precursores vieram a ser mimoseados pelos conspiradores profissionais revolucionários do século seguinte, estes últimos esqueceram Buonarroti por completo.
O que é uma excelente deixa para apresentar esta outra fotografia, que foi tirada num dos anos finais do século XX (1997/8?) pelo fotógrafo Eduardo Gageiro. Trata-se de uma fotografia de conjunto dos dirigentes históricos do Partido Comunista Português (PCP). Sentados e da esquerda para a direita: António Dias Lourenço (1915-2010), Álvaro Cunhal (1913-2005), José Vitoriano (1917-2006), Joaquim Gomes (1917-2010) e Octávio Pato (1925-1999). Detrás, de pé e pela mesma ordem: Jaime Serra (1921-2022), Sérgio Vilarigues (1914-2007) e Fernando Blanqui Teixeira (1922-2004). Para os mais rigorosos e mais interessados, o elenco congrega não apenas os quatro membros eleitos para o Secretariado do Comité Central (CC) do PCP em 4 de Maio de 1974 (Cunhal, Gomes, Pato e Vilarigues), como também oito dos dez membros da Comissão Política desse mesmo Comité Central que foram eleitos nessa mesma altura, conforme se pode ler num documento da autoria de um dos presentes, Joaquim Gomes, que foi publicado em 1999 e de onde tomei a liberdade de retirar a lista que se pode apreciar mais abaixo, onde se dá conta de como ficou a composição do CC do PCP logo depois do 25 de Abril. Os nomes dos presentes na foto acima estão sublinhados. E nota-se aplicação e método na enumeração feita por Joaquim Gomes. Cada nome aparece acompanhado da antiguidade como militante, como funcionário do partido (i.e., trabalhando em exclusivo na actividade política clandestina), os anos de prisão, e também a antiguidade do militante como membro do CC. Estranhamente, o que ficou por nomear foi a idade de cada um. Assim, em 1974 aquela vanguarda mais esclarecida dos comunistas portugueses que nos aparece mais acima tinha uma idade média de 56 anos, estivera preso quase 10 anos, era militante há 37 anos, funcionário do PCP há um pouco mais de 29 anos e integrava o CC desde há 24 anos e meio.
Embora seja um pouco forçado este processo de sintetizar todos aqueles números acima evocados num retrato-robot da elite dos militantes comunistas quando da queda do Estado Novo, a verdade é que aqueles dados nos podem dizer muita coisa: todos eles se haviam tornado militantes muito novos, aos 19 anos em média (i.e. 56-37 anos) e tinham-se profissionalizado também muito cedo: cerca dos 27 anos (56-39) haviam-se passado a dedicar exclusivamente ao partido. Uma profissão que comportava muitos riscos: 10 anos de prisão da PIDE em média. Mas, precisamente por causa desses riscos, mas também por se considerarem uma vanguarda de cunho quase sacerdotal, não se pode dizer que eles pudessem compartilhar a vivência do povo que tanto invocavam. Na época ainda não se inventara a expressão «viver numa bolha» mas era precisamente o que acontecia com eles, discípulos longínquos de um Buonarroti, conspiradores profissionais dedicados à causa da revolução. A que surgiu em Abril de 1974, era-lhes favorável, mas ainda não era a revolução deles. E felizmente nunca foi a revolução deles. É precisamente isso e o que aconteceu depois do 25 de Abril no Portugal democrático que eu gostaria de enfatizar e que me levou a escrever este poste, baseando-me na fotografia de 1997/98, que foi tirada quase 25 anos depois do 25 de Abril. A fotografia mostra-nos que esse quarto de século em que Portugal passou a viver em Democracia, mesmo que essa circunstância tivesse feito desaparecer as ameaças que pendiam sobre os membros do CC nos 37 anos precedentes de militância comunista, parece não ter tido qualquer influência profissional na actividade de qualquer um deles veio a exercer. Haviam sido funcionários do partido antes de 1974 e aqui vêmo-los reformados de funcionários do partido. Precisamente, como agora se diz, na mesma «bolha».
Uma última nota para acrescentar esta outra fotografia com os mesmos, que foi provavelmente feita na mesma altura, mas onde a sua ordem é diferente. Octávio Pato mudou-se da extrema direita para a extrema esquerda sentada, desalojando Dias Lourenço que foi para a extrema direita levantada, enquanto Blanqui Teixeira ocupou o lugar sentado que fora o de Octávio Pato. Os outros ocupam os mesmos lugares. Nesta versão da foto, a debilidade física de Octávio Pato é notória e isso torna-se mais evidente pelo olhar que lhe dedica José Vitoriano (ao centro). Apesar de ser o mais novo dos oito, Octávio Pato será o primeiro a falecer, em Fevereiro de 1999.

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