(Republicação)
A edição de há setenta e cinco anos do Diário de Lisboa continha um importante artigo de Maurice Duverger (então jovem estrela em ascensão com 32 anos) que colocava a questão em título: qual o papel da Alemanha no futuro da Europa? Tinha uma chamada de primeira página. Não asseguro que o leitor comum do jornal da época se apercebesse da importância do tema, mas vale a pena ter a oportunidade de o reler com a presciência de conhecermos o futuro e sabermos as consequências das opções então tomadas.
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Todas as questões de pormenor que podem surgir na Conferência de Paris estão subordinadas á solução de um problema fundamental: a posição futura da Alemanha e o seu papel na rivalidade latente entre a Rússia e o Ocidente. A situação em Berlim, a fiscalização aliada, o regime de ocupação, a orientação da economia, tudo isso só será duradouramente resolvido se precisamente se esclarecer o fundo do debate em curso há quatro anos. E o debate consiste em saber se a Alemanha vai entrar na esfera de influência soviética, ingressar no Pacto do Atlântico ou ser neutralizada.
A escolha entre estas três soluções pode ser adiada. Mas impor-se-á mais cedo ou mais tarde. Todo o jogo diplomático a que assistimos não tem outro objectivo.
O Reich na esfera de influência russa
Se a Alemanha se comunizar, a segunda guerra mundial terminará por uma derrota esmagadora das democracias ocidentais. Para estas a situação será pior do que em Setembro de 1939. Hitler era menos perigoso do que Estaline, precisamente porque na retaguarda do primeiro estava o segundo e na retaguarda do segundo não está ninguém. Até Hong-Kong, até Singapura, não há contrapeso para o poder da URSS.
Nessa hipótese, a terceira guerra mundial será inevitável. Trata-se apenas de aguardar a data da sua eclosão.
Esta solução está, naturalmente, afastada, não em nome de um anti-comunismo obtuso e sistemático, mas por uma preocupação compreensível de salvaguardar a paz. Evitar que a Alemanha ingresse na esfera de influência soviética é um imperativo da diplomacia ocidental.
Praticamente, restam portanto, duas soluções possíveis: a neutralização ou a “atlantização” dos vencidos.
Por muito dolorosa que a segunda pareça aos olhos dos povos da Europa, sobretudo daqueles que ainda recentemente suportaram os horrores da ocupação, é inútil dissimular a sua importância, pois, ninguém certamente terá dúvidas de que vão para ela as boas graças da poderosa América.
Os perigos da “atlantização”
Não falta quem, com certo fundamento, evoque sempre que se põe o problema da “atlantização” da Alemanha, o risco de um renascimento do militarismo e do expansionismo germânicos. A assinatura do Reich ao Pacto do Atlântico implica automaticamente o seu rearmamento.
“A Alemanha no Pacto do Atlântico? Nunca!” Tal era a expressão empregada ainda não há muitos dias por uma personalidade respeitável da política francesa.
Mas, se há quem pense assim, vamos nós, que já fizemos a guerra de 1939 com a estratégia de 1914, fazer a paz de 1949 com a diplomacia de 1919?
A entrada da Alemanha na comunidade atlântica podia ser o epílogo da rivalidade franco-alemã. A ideia de guerra e de invasão entre a França e a Alemanha tornar-se-ia anacrónica. Franceses e alemães tornar-se-iam aliados amanhã, como hoje já o são franceses e ingleses.
Para os franceses esta transformação não seria mais profunda do que aquela que se registou em 1815, no Congresso de Viena. Há apenas a objectar que uma tal aliança teria que ser cuidadosamente vigiada. A Alemanha apoiada pela América tornar-se-ia rapidamente a nação preponderante na Europa.
Se a Alemanha, depois do rearmamento, quisesse um dia retirar-se do pacto, a França poderia continuar a contar com a protecção americana? O problema da “atlantização” da Alemanha deve por isso considerar-se pelo prisma das sua possíveis repercussões no equilíbrio europeu, na paz do Mundo e não pelo prisma da luta secular entre franceses e alemães, a qual pertence a uma época já ultrapassada.
O ponto de vista anti-comunista
Do ponto de vista da defesa armada da Europa contra a propagação do comunismo, a adesão da Alemanha ao sistema atlântico oferece incontestáveis garantias.
É certo que a eficácia militar do pacto é por enquanto limitada e que continuará a sê-lo enquanto a Europa não começar a receber as armas de procedência americana. Mas a inclusão permitirá precisamente encurtar esse prazo de espera, graças á contribuição que a indústria alemã pode prestar para o rearmamento dos países ocidentais.
Assim, a retirada das forças de ocupação ocidentais ficaria ligada ao restabelecimento de uma força militar alemã, pois as tropas anglo-saxónicas e francesas que estacionam naquele país passariam automaticamente a ser aliadas do exército alemão reconstituído.
A missão dessas forças não consistiria em vigiar para que a ordem fosse mantida no interior da Alemanha, mas para que a sua fronteira continuasse inviolada. Completar-se-ia assim uma evolução iniciada com o bloqueio de Berlim. A pressão russa não encontraria na sua frente o vácuo, mas uma resistência organizada.
A ideia da neutralização
É certo que a ideia da neutralização, com uma garantia conjunta dos Estados Unidos e da URSS nos termos da qual a neutralidade alemã não poderia ser violada por aquelas potências ou por qualquer outra pode conduzir ao mesmo resultado. Mas não devemos esquecer que nessa garantia o factor russo seria muito mais importante do que o americano, dada a proximidade da URSS e o afastamento dos Estados Unidos. É, portanto, legítimo perguntar se a exclusão da Alemanha do Pacto do Atlântico o não enfraquece e se a defesa efectiva da Europa não está de antemão comprometida se for organizada no Reno em vez de ser organizada no Elba.
Tendo apenas em conta os dados militares da situação não há dúvida de que assim é.
Mas a experiência destes últimos anos demonstra que a infiltração política é mais frequente do que a invasão armada é tão perigosa quanto ela. É, portanto, em função da primeira e não da segunda que devem considerar-se as vantagens relativas das duas soluções propostas: a neutralização e a “atlantização”. De momento, julgamos impossível dizer qual delas é preferível.
Quer se trate do Pacto do Atlântico, quer de um tratado garantindo a neutralidade da Alemanha, não será possível definir, com suficiente rigor, uma fórmula que permita fechar completamente a porta a todas as tentativas de infiltração. Haverá sempre maneira para aqueles que não quiserem cumprir lealmente os seus compromissos, de as iludir ou ladear.
Esta realidade é demasiado complexa e movediça para ser condicionada.
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Todas as questões de pormenor que podem surgir na Conferência de Paris estão subordinadas á solução de um problema fundamental: a posição futura da Alemanha e o seu papel na rivalidade latente entre a Rússia e o Ocidente. A situação em Berlim, a fiscalização aliada, o regime de ocupação, a orientação da economia, tudo isso só será duradouramente resolvido se precisamente se esclarecer o fundo do debate em curso há quatro anos. E o debate consiste em saber se a Alemanha vai entrar na esfera de influência soviética, ingressar no Pacto do Atlântico ou ser neutralizada.
A escolha entre estas três soluções pode ser adiada. Mas impor-se-á mais cedo ou mais tarde. Todo o jogo diplomático a que assistimos não tem outro objectivo.
O Reich na esfera de influência russa
Se a Alemanha se comunizar, a segunda guerra mundial terminará por uma derrota esmagadora das democracias ocidentais. Para estas a situação será pior do que em Setembro de 1939. Hitler era menos perigoso do que Estaline, precisamente porque na retaguarda do primeiro estava o segundo e na retaguarda do segundo não está ninguém. Até Hong-Kong, até Singapura, não há contrapeso para o poder da URSS.
Nessa hipótese, a terceira guerra mundial será inevitável. Trata-se apenas de aguardar a data da sua eclosão.
Esta solução está, naturalmente, afastada, não em nome de um anti-comunismo obtuso e sistemático, mas por uma preocupação compreensível de salvaguardar a paz. Evitar que a Alemanha ingresse na esfera de influência soviética é um imperativo da diplomacia ocidental.
Praticamente, restam portanto, duas soluções possíveis: a neutralização ou a “atlantização” dos vencidos.
Por muito dolorosa que a segunda pareça aos olhos dos povos da Europa, sobretudo daqueles que ainda recentemente suportaram os horrores da ocupação, é inútil dissimular a sua importância, pois, ninguém certamente terá dúvidas de que vão para ela as boas graças da poderosa América.
Os perigos da “atlantização”
Não falta quem, com certo fundamento, evoque sempre que se põe o problema da “atlantização” da Alemanha, o risco de um renascimento do militarismo e do expansionismo germânicos. A assinatura do Reich ao Pacto do Atlântico implica automaticamente o seu rearmamento.
“A Alemanha no Pacto do Atlântico? Nunca!” Tal era a expressão empregada ainda não há muitos dias por uma personalidade respeitável da política francesa.
Mas, se há quem pense assim, vamos nós, que já fizemos a guerra de 1939 com a estratégia de 1914, fazer a paz de 1949 com a diplomacia de 1919?
A entrada da Alemanha na comunidade atlântica podia ser o epílogo da rivalidade franco-alemã. A ideia de guerra e de invasão entre a França e a Alemanha tornar-se-ia anacrónica. Franceses e alemães tornar-se-iam aliados amanhã, como hoje já o são franceses e ingleses.
Para os franceses esta transformação não seria mais profunda do que aquela que se registou em 1815, no Congresso de Viena. Há apenas a objectar que uma tal aliança teria que ser cuidadosamente vigiada. A Alemanha apoiada pela América tornar-se-ia rapidamente a nação preponderante na Europa.
Se a Alemanha, depois do rearmamento, quisesse um dia retirar-se do pacto, a França poderia continuar a contar com a protecção americana? O problema da “atlantização” da Alemanha deve por isso considerar-se pelo prisma das sua possíveis repercussões no equilíbrio europeu, na paz do Mundo e não pelo prisma da luta secular entre franceses e alemães, a qual pertence a uma época já ultrapassada.
O ponto de vista anti-comunista
Do ponto de vista da defesa armada da Europa contra a propagação do comunismo, a adesão da Alemanha ao sistema atlântico oferece incontestáveis garantias.
É certo que a eficácia militar do pacto é por enquanto limitada e que continuará a sê-lo enquanto a Europa não começar a receber as armas de procedência americana. Mas a inclusão permitirá precisamente encurtar esse prazo de espera, graças á contribuição que a indústria alemã pode prestar para o rearmamento dos países ocidentais.
Assim, a retirada das forças de ocupação ocidentais ficaria ligada ao restabelecimento de uma força militar alemã, pois as tropas anglo-saxónicas e francesas que estacionam naquele país passariam automaticamente a ser aliadas do exército alemão reconstituído.
A missão dessas forças não consistiria em vigiar para que a ordem fosse mantida no interior da Alemanha, mas para que a sua fronteira continuasse inviolada. Completar-se-ia assim uma evolução iniciada com o bloqueio de Berlim. A pressão russa não encontraria na sua frente o vácuo, mas uma resistência organizada.
A ideia da neutralização
É certo que a ideia da neutralização, com uma garantia conjunta dos Estados Unidos e da URSS nos termos da qual a neutralidade alemã não poderia ser violada por aquelas potências ou por qualquer outra pode conduzir ao mesmo resultado. Mas não devemos esquecer que nessa garantia o factor russo seria muito mais importante do que o americano, dada a proximidade da URSS e o afastamento dos Estados Unidos. É, portanto, legítimo perguntar se a exclusão da Alemanha do Pacto do Atlântico o não enfraquece e se a defesa efectiva da Europa não está de antemão comprometida se for organizada no Reno em vez de ser organizada no Elba.
Tendo apenas em conta os dados militares da situação não há dúvida de que assim é.
Mas a experiência destes últimos anos demonstra que a infiltração política é mais frequente do que a invasão armada é tão perigosa quanto ela. É, portanto, em função da primeira e não da segunda que devem considerar-se as vantagens relativas das duas soluções propostas: a neutralização e a “atlantização”. De momento, julgamos impossível dizer qual delas é preferível.
Quer se trate do Pacto do Atlântico, quer de um tratado garantindo a neutralidade da Alemanha, não será possível definir, com suficiente rigor, uma fórmula que permita fechar completamente a porta a todas as tentativas de infiltração. Haverá sempre maneira para aqueles que não quiserem cumprir lealmente os seus compromissos, de as iludir ou ladear.
Esta realidade é demasiado complexa e movediça para ser condicionada.
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Reparei noutra notícia: a da partida das crianças austríacas de Portugal. Um facto esquecido, esse, de milhares de crianças da Áustria terem vindo para cá enquanto o seu país era reconstruído.
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