27 janeiro 2022

O SALDO DO «GRANDE SALTO EM FRENTE»

Em 11 de Janeiro de 1962, tinha tido início uma importantíssima conferência política no Grande Salão do Povo em Pequim.A conferência contava com a presença de mais de 7.000 funcionários do partido, vindos de todo o país, e ficou conhecida precisamente por essa designação: a Conferência dos Sete Mil Quadros. O seu propósito principal era a avaliação dos resultados do Grande Salto em Frente, uma campanha para o incremento da produção agrícola e industrial, fomentada a partir de 1958 por Mao Zedong. O resultado, é hoje inequívoco, foi um colossal fracasso: em vez dos esperados aumentos de produção, e um pouco à semelhança do que acontecera na União Soviética nos anos 30, a China também sofreu uma Grande Fome, que provocou a morte de milhões. O isolamento da China - que entretanto rompera com a União Soviética - fazia com que estes factos - graves - fossem na altura desconhecidos do resto do Mundo, mas fossem perfeitamente conhecidos daquela elite de 7.000 quadros que quotidianamente acompanhava os trabalhos da conferência. Havia responsáveis, sobretudo o presidente Mao. Há precisamente 60 anos (27 de Janeiro de 1962) subia à tribuna para discursar Liu Shaoqui que, apesar de ser o presidente da República Popular da China e a pessoa a quem competia apresentar formalmente o relatório, era apenas o nº 2 da hierarquia comunista, atrás do inevitável (presidente) Mao Zedong. O discurso de Liu Sahoqi irá durar três horas - completamente ao estilo das coreografias comunistas! O discurso não contém ataques directos a Mao, algo que seria impensável naquelas circunstâncias, mas a análise detalhada que o orador faz não deixa dúvidas quanto à sua avaliação dos resultados das políticas maoistas. Na província de Hunão, são os próprios camponeses que atribuem as suas dificuldades «a 30% de causas naturais e a 70% de causas provocadas pela acção humana». Essa foi uma passagem que gerou as primeiras reacções desconfortáveis entre a (enorme) audiência. Mais adiante, Liu irá recuperar uma das muito conhecidas expressões de Mao, «nove dedos contra um», que este último empregava regularmente para se referir à proporção entre sucessos e insucessos, menorizando os segundos. «No geral, os nossos sucessos têm sido primordiais, os fracassos e erros ocupam apenas um lugar secundário. Imagino se se poderá dizer, em termos gerais, se a proporção de sucessos para fracassos terá sido de sete para três, embora cada região seja diferente. Um dedo para nove dedos é uma regra que não se aplica em todo o lado. Há muito poucas regiões em que os erros sejam equivalentes a um dedo e os sucessos equivalentes a nove.» Aqui Mao interrompeu Liu, visivelmente aborrecido: «Não foram assim tão poucas regiões: por exemplo em Hebei só em 20% das regiões é que houve um decréscimo da produção e em Jiangsu 30% das regiões aumentaram a sua produção ano após ano!» Mas Liu não se intimidou e prosseguiu o seu discurso-relatório: «Em geral, não se pode dizer que tenha sido apenas um dedo, mas antes três, e em certos locais foram mesmo mais, por exemplo na região de Xinyang (Honão) ou na de Tianshui (Gansu).» E quem é que havia que responsabilizar por aquele desastre? O sentido do discurso de Liu era inequívoco: na direcção central do partido, incluindo-o a ele. Mais do que isso, Liu tentou aplacar a mais que percebida irritação de Mao, deferindo a definitiva avaliação dos resultados do Grande Salto em Frente para daí a cinco ou dez anos. E, num outro discurso dessa conferência, foi o primeiro-ministro Zhou Enlai que tentou absorver para si as responsabilidades daquilo que correra mal: «Foi um erro meu. (...) Aliás, muito daquilo que ocorreu de mal nestes últimos anos aconteceu precisamente quando contrariámos a linha geral (do partido) e as preciosas instruções do presidente Mao». Tratava-se de uma tentativa óbvia de estabelecer uma ligação entre as avaliações - e as posições políticas - distintas de Mao Zedong e de Liu Shaoqi. Nesta fotografia abaixo dos trabalhos da conferência, podemos ver os três: da esquerda para a direita, Mao Zedong, Liu Shaoqi e Zhou Enlai. Ao arrepio do que era a tradição fotográfica dos comunistas chineses, mitificando o Grande Timoneiro, os três homens até são apresentados em pé de igualdade.
Como facilmente se depreenderá e porque todos os ditadores não aceitam destas críticas públicas à sua actuação, que eles assimilam a desafios à sua autoridade, quando da eclosão da Revolução Cultural, Liu Shaoqi veio a pagar amargamente todas as críticas que havia endereçado a Mao neste seu discurso de há precisamente 60 anos...

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