Antes de se ler este livro, sugiro que se faça uma revisão, breve, ao que consta do Programa do Movimento das Forças Armadas apresentado aos portugueses em 25 de Abril, tendo por contraste o que aconteceu nos 19 meses que se lhe seguiram.
«Quanto à retracção do dispositivo na fase inicial não houve verdadeiramente um plano rígido de retracção. A explicação terá que assentar em três factos:
O 1º é que só muito tardiamente ele foi autorizado pelo general Spínola e quando o foi parte da retracção estava feita ou em curso.
O 2º é que com os primeiros ultimatos tudo se precipitou e a retracção começou por aí, sem estar prevista, mas para evitar banhos de sangue. E se houve unidades que foram evacuadas em função dos ultimatos outras seriam porque sem aquelas já não se justificavam estas.
O 3º porque qualquer plano por nós feito sem coordenar com o PAIGC não ia resultar sem incidentes, porque as nossas razões para retirar daqui ou dali nem sempre coincidiam com as deles, que deixaram para o final as terras (chãos) onde tinham menos penetração e lhes estavam a exigir grande esforço de acção psicológica e de trabalho político.» (pp. 192-193)
Quando se chega ao fim desta explicação d´A Descolonização da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães, é inerente concluir que, perante tais explicações, o que não houve foi plano: nem rígido, nem flexível. Nem muito provavelmente teria sido possível haver plano. Haveria quanto muito, umas «linhas básicas: da fronteira para o interior e, (...) sempre que possível, as unidades com mais tempo de comissão».
Pela aparência, as linhas acima parecem redigidas por um oficial da arma de Artilharia. Deles é clássico o cartoon acima, de que é a Artilharia que confere dignidade ao que, de outra forma, seria uma mera bagunça. Aqui também: é preciso uma certa petulância para designar por plano não rígido o que terá decorrido antes com uma enorme dose de improvisação. Mas não: o coronel Jorge Golias é oriundo da arma de Transmissões, exemplo adequado de uma linha significativa de oficiais de armas não combatentes e dos serviços que mais entusiasmadamente abraçaram o projecto político MFA depois do 25 de Abril. Duran Clemente, de Administração Militar, ou Faria Paulino, da Força Aérea, são outros exemplos disso e presenças constantes nos órgãos do MFA da Guiné ao longo deste livro*. Livro que tem a indiscutível utilidade de uma excelente descrição dos factos - a guerra e depois a descolonização da Guiné nos cinco meses que se seguem ao 25 de Abril de 1974 - para mais quando feita por quem os viveu directamente e se constata ter tomado notas e investigado o assunto. Nesse sentido, de testemunho, o livro é incontornável. Mas o preço a pagar por isso será uma surpreendente ausência de distanciamento em relação aos principais factos narrados, apesar dos mais de 40 anos entretanto transcorridos. O autor, como se constata mais acima, parece ter ficado na época dos acontecimentos e tem uma tese a defender: correu tudo o melhor que podia ter corrido, atendendo às circunstâncias. E houve aspectos que até foram excelentes.
«O Boletim do MFA na Guiné foi o primeiro órgão oficial do MFA em todos os territórios. Dele apenas saíram dois números. O primeiro saiu em 1 de Junho de 1974 e o segundo em 17 de Junho. No entanto, a sua importância foi enorme, tendo sido distribuído em todas as unidades na Guiné e enviado para Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde (3 mil exemplares).» (p. 163)
O autor desenvolve na página seguinte que o boletim irritou Spínola por causa de um código revolucionário (assim mesmo, a bold), que fazia que o MFA fossem todos (os militares) e todos fossem do MFA mas o que se nota naquelas palavras é um voluntarismo que chega a ser arrogante, para quem se lembre da profusão de novas publicações político-ideológicas que apareceram (ou se tornaram disponíveis) a seguir ao 25 de Abril. É o mesmo voluntarismo que mais acima havíamos lido intuído em expressões como esforço de acção psicológica e de trabalho político (junto das populações), o pressuposto de que, com muito trabalho de psico, todas as pessoas se convenceriam ou (para usar a mesma expressão de Mário Castrim no Diário de Lisboa da época em apoio às famosas campanhas de Dinamização Cultural) se nacionaliza(ria)m os cidadãos. A sobrevivência dessa cultura de PREC tão pura e arreigada é, para mim, o mais exótico dest'A Descolonização da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães.
* Para deixar um exemplo contrastante, Matos Gomes, outra presença e também prefaciador do livro, era oriundo da arma de Cavalaria.
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