Por muito que esteja a ser desagradável a muita gente a futura ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, a verdade é que há que reconhecer que a sua posse se fundamenta na legitimidade. O que já não se pode dizer de outros episódios da História Universal que assentaram em verdadeiras fraudes, nomeadamente um que aqui se contará, ocorrido nos princípios do século XVII na Rússia que hoje é de Putin. Regresse-se até Março de 1584, quando morreu Ivan-o-Terrível, o famoso Tsar louco. Depois de ter morto o mais velho, Ivan deixava dois herdeiros: Feodor (versão russa do nome Teodoro) de 26 anos e Dimitri (Demétrio) com apenas 18 meses. O primeiro era uma fraca figura, que, quando da subida ao trono, foi rapidamente dominada pelo cunhado Boris Godunov, o irmão da tsarina. Como o casal não produziu nenhum herdeiro, Dimitri, apesar de criança, permaneceu um importante factor político por causa da questão da sucessão. Até que em 1591, quando Dimitri tinha 8 anos, ele morreu, presumivelmente vítima de um acidente. Claro que se desconfiou de Boris Godunov, pois assim seria sem problemas que ele herdaria o trono em caso de morte do cunhado, o que veio precisamente a acontecer em 1598. O Tsar Boris acabou por ter um reinado muito complicado. Entre 1601 e 1603 um encadeamento de más colheitas e a consequente fome provocou uma revolta generalizada na Rússia. A encabeçar os descontentes, mas também com apoio dos vizinhos polacos, apareceu uma figura que se reclamava ser Dimitri, o filho de Ivan-o-Terrível que afinal não morrera no tal acidente em 1591 e permanecera escondido depois disso. Em vários aspectos, o fenómeno assemelha-se ao sebastianismo que, em período contemporâneo, grassou por Portugal. Só que na Rússia foi muito mais bem sucedido: aproveitando a morte do Tsar Boris e a fase de consolidação do poder do seu filho e herdeiro Feodor II, o falso Dimitri (que, na verdade, se chamava Gregório Otrepiev) conseguiu conquistar Moscovo, depor (e executar) Feodor e tornar-se o Tsar com o nome de Demétrio. A mãe (do verdadeiro Dimitri) reconheceu-o. Foi coroado. Adquiriu legitimidade política: o sonho de qualquer escroque - imagine-se Vale e Azevedo a tomar posse como presidente da República! O seu poder veio a revelar-se, porém, tão frágil quanto aquele que ele acabara de derrubar. O reinado do falso Demétrio durou menos de um ano - de Junho de 1605 a Maio de 1606. A pedra de toque foi a questão polaca e a questão religiosa (que eram sinónimas porque os polacos eram católicos e os russos ortodoxos). Ao casar com uma polaca que não abjurou da sua religião conforme eram as tradições dos czares, Demétrio, o Impostor precipitou uma revolta encabeçada pelos boiardos (nobres), que o mataram numa peripécia reminiscente à desdita de Miguel de Vasconcelos. Mas esse não foi o fim da história porque, confiantes no sucesso da personificação do filho do Terrível, mais dois outros Dimitris falsos apareceram, de forma (naturalmente) encadeada: um entre 1607 e 1610 e outro entre 1611 e 1612. Acabavam sempre mortos mas a personagem parecia ter várias vidas como se se movimentasse por um jogo de computador moderno. Comparado com tudo isto, Donald Trump, até passa pela respeitabilidade de ser quem ele afirma que é... pelo menos até ver.
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