Foi já há muitos anos que, certo dia e por malícia, resolvi dar a alcunha de Croquetes a uma pessoa das minhas relações profissionais. Porquê croquetes? Eu encontrava-me com essa pessoa tanto em reuniões de trabalho quanto em ocasiões ditas sociais que, de social, nada tinham. Creio que comigo, a esmagadora maioria dos que a elas compareciam o faziam por razões profissionais. Enfim, para o que interessa agora, o meu amigo Croquetes parecia ser duas pessoas distintas conforme o teor da reunião. A apagada pessoa que raramente intervinha nas reuniões convencionais e que, quando o fazia, beirava regularmente o desastre pela ignorância das questões de que dava mostras, transmutava-se numa outra pessoa quando a ocasião era social. Parece que a posse de um croquete (daí a alcunha...), um coquetel ou mesmo um canapé lhe conferiam a segurança que lhe faltava quando as conversas eram a doer e que havia que emitir e sustentar opiniões. A verdade parece-me muito mais prosaica do que isso: as conversas de canapé e coquetel na mão têm uma etiqueta muito própria - e competências muito distintas. É por isso que o meu amigo Croquetes, no domínio das pequenas graçolas, das anedotas toleráveis mas não muito inteligentes e de discorrer profundamente sobre precisamente nada era o maior. Há quem se especialize: conseguem falar genericamente sobre uma multitude de temas, mas não conseguem falar aprofundadamente sobre quase nenhum. São os reis da recepção, que conseguem meter conversa com qualquer interlocutor que lhes calhe em sorte, que sabem deixar os outros à vontade quando estão de anfitrião. E que são uns tudólogos de eleição quando falam para círculos assim mais alargados, os com saída até são convidados para aparecer na televisão. Ao ler escrito por aí por um, e a propósito destas últimas eleições presidenciais francesas, que havia «uma regra "republicana" de que, contra um candidato de extrema-direita, o voto era “cego” em quem quer que se lhe opusesse», e de que «isso, afinal, havia acabado, até na esquerda», apeteceu-me perguntar, a respeito deste comentário taxativo (que me parece combinar muito bem com o moscatel...), desde quando é que existe essa regra "republicana"? É que a História está repleta de episódios de esquerdas dissidentes. Na própria França, agora no centro das atenções, ficou célebre a atitude de indiferença do PCF ao não fazer nenhuma recomendação de voto para a segunda volta das eleições presidenciais francesas de 1969. Mas disso já aqui falei num poste de há três anos. Vamos regressar 85 anos ao passado, às eleições presidências alemãs de 1932, com a presença de Adolf Hitler (himself), e veja-se pelo gráfico abaixo como foi o comportamento eleitoral da esquerda comunista (KPD - assinalada a vermelho). Para a primeira volta foi até a extrema-direita que se apresentou dividida, com Adolf Hitler a dividir os votos com Theodor Duesterberg dos Capacetes de Aço, e ambos concorriam contra o comunista Ernst Thälmann e o presidente em funções, Paul von Hindenburg. Este último, como se percebe pelo arco-íris que enfeita a sua votação, recebia o apoio dos restantes partidos de Weimar (os democráticos), desde os sociais-democratas do SPD até ao centro católico (Z). Refira-se que este apoio dado pelo SPD a um conservador como Hindenburg foi muito mal acolhido nas franjas mais esquerdistas dos seus militantes. Deve-se a essa discordância, por exemplo, a dissidência de um militante como Klaus Fuchs, mais tarde celebrizado por se ter tornado um espião do programa atómico norte-americano em prol da União Soviética. Mas, mais importante do que as militâncias, aprecie-se o comportamento eleitoral das massas de uma eleição para outra: os candidatos da segunda volta acabam por ser a repetição da primeira, apenas com a desistência de Duesterberg, cuja grande maioria dos votos se transferiram para Adolf Hitler, mas a insistência de Thälmann em continuar a concorrer foi premiada com a perda de ¼ dos votos que recebera originalmente. Numa conclusão inequívoca, se Adolf Hitler perdeu essas eleições presidenciais de 1932 para Paul von Hindenburg, isso aconteceu apesar do comportamento dos comunistas, e não por causa deles. Portanto: em 1932 a regra "republicana" ainda não existia na Alemanha e em 1969 a regra "republicana" já não existia em França. Se calhar a regra que todos agora invocam para fustigar o comportamento de Jean-Luc Mélenchon nunca foi assim tão rigorosa, é mais coisa para se invocar ao ritmo das duas trincadelas num canapé...
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