Basta olharmos para a localização dos cinco países que conseguiram permanecer neutrais durante a Segunda Guerra Mundial para nos apercebermos que as circunstâncias que rodearam a sua neutralidade foram obrigatoriamente distintas. Localizadas bem no centro da Europa de que a Alemanha assumira a hegemonia, Suécia e Suíça tiveram necessariamente que contemporizar muito mais com as exigências do III Reich do que os três restantes. Por sua vez, situadas na orla Atlântica, a Irlanda e Portugal (este muito por efeito do seu império ultramarino) tiveram a sua liberdade de acção muito mais condicionada pelos Aliados anglo-saxónicos que exerciam a sua hegemonia sobre os mares. As capacidades de coacção dependiam da geografia. Dos cinco países, pela localização e pela dimensão, apenas a Espanha, e apesar das simpatias ideológicas, possuiu a autonomia estratégica para assumir qualquer das condutas (o engajamento com o Eixo ou a neutralidade), prestando-se a ser persuadida pelos dois lados – e, mesmo assim, por vezes foi persuadida mas com argumentos contundentes, como demonstrei neste poste. Porém, terminada a Guerra, tornou-se inconveniente a todos os países neutros evidenciarem as facilidades que haviam sido prestadas aos vencidos. E essas facilidades, por força das circunstâncias acima descritas e mau grado aquilo que depois seja a reescrita da História, foram significativamente superiores entre suecos e suíços do que entre irlandeses e portugueses.
Daí um esforço propagandístico retrospectivo dos primeiros realçando as suas capacidades de auto-defesa (depois dessas capacidades não terem sido submetidas à prova...), que acompanharam alguns oportunos destaques de gestos pró-Aliados mas também algumas omissões quando os gestos beneficiaram os seus inimigos. Nestas fotografias acima, num desfile militar suíço vêem-se viaturas particulares a rebocar peças de artilharia, numa insinuação à mobilização dos recursos civis, e um soldado sueco armado controla soldados alemães em trânsito, esticando as pernas numa estação ferroviária do seu país. No último caso e apesar do que a fotografia possa sugerir, a Suécia permitiu entre 1940 e 1943 o trânsito pelo seu país de muitas centenas de milhares de soldados alemães e de dezenas de milhares de vagões carregados de abastecimentos e material de guerra, destinados às unidades militares alemãs que guarneciam o Norte da Noruega e que, aliados com os finlandeses, combatiam contra os soviéticos no extremo norte da União Soviética, tentando apoderar-se do porto de Murmansk (abaixo). À sua maneira tratava-se de facilidades semelhantes e simétricas às que Portugal concedia naqueles mesmos anos aos Aliados nos Açores, violações descaradas das leis estritas da neutralidade. Percebe-se que seja um tema que não envaideça os suecos e a que eles não deem grande destaque. Parece haver um pacto de silêncio compreensível estabelecido por suíços e suecos a respeito de muitos desses episódios mais conformados da Segunda Guerra Mundial.
O que me parece menos compreensível é como, em contraste, parece existir em Portugal um pacto ideológico de pessoas dedicadas a estudar este mesmo período da História e que se mostram sobretudo preocupadas em escarafunchar todos os indícios de colaboração do governo português com os países do Eixo, de preferência envolvendo (e culpando) António Salazar. É ridículo porque, quando se estuda o assunto dos países neutrais durante a Segunda Guerra para além daquilo que aconteceu nesta nossa paróquia portuguesa, constata-se naturalmente que a contribuição sueca (dirigida pelo impoluto 1º ministro social-democrata Per Albin Hansson) para o esforço de guerra nazi, foi muito superior à portuguesa, apesar de todo o fascismo e proximidade ideológica do seu homólogo António de Oliveira Salazar…
A História é feita por pessoas que, como tal, podem-na interpretar à luz da sua própria ideologia. Os países neutrais foram certamente obrigados a muito jogo duplo e a cedências várias para conseguir sobreviver o melhor possível.
ResponderEliminarSera correcto afirmar que no caso Irlandes a sua conivencia com os aliados ditada pela geografia realmente existente tera sido profundamente a contragosto? Uma vez que a altura a relativamente jovem Republica da Irlanda tinha fortes "desacordos" com o Reino Unido? Alias, havia um estado de pre-guerra proxy no Irlanda do Norte?
ResponderEliminarA prevalência do que se escreve em Portugal sobre estes anos da guerra, a começar por Fernando Rosas, a figura mais destacada, é que seria dever de qualquer dirigente de qualquer país europeu alinhar com o lado dos "bons" e que (acessoriamente) Salazar só o fez contrariado. Ora isso é um daqueles disparates porque o objectivo de todos eles era ESCAPAR-SE à guerra, permanecendo neutral.
ResponderEliminarHouve quem o conseguisse (e, mesmo relutantemente, Rosas e os discípulos deviam elogiar Salazar por isso) e houve quem falhasse mesmo que nada tivessem feito para provocar os beligerantes - estou a lembrar-me dos casos da Dinamarca ou da Grécia, para escolher dois regimes quase antagónicos.
No caso da Irlanda, já aqui deixei explicado num poste como a neutralidade irlandesa e o encarniçamento com que Eamon de Valera a defendeu irritaram profunda e pessoalmente tanto W. Churchill como F.D. Roosevelt.(http://herdeirodeaecio.blogspot.pt/2012/10/a-irlanda-e-sua-economia-de-guerra-1939.html)
O discurso da vitória de Maio de 1945 do primeiro tem passagens que estão longe de a transformar na sua "finest hour" (http://herdeirodeaecio.blogspot.pt/2012/09/winston-churchill-e-eamon-de-valera.html).
Quanto aos norte-americanos, o desdém também era recíproco, e tinha a ver com o facto da administração Roosevelt ter despachado para Dublin um embaixador político que era aparentado com os Roosevelt mas de uma arrogância e incompetência monumentais. Um dia destes poderei aqui regressar a esse tema.
Obrigado. Ainda nao tinha lido o primeiro texto que linkou. Muito interessante apesar de me parecer (posso estar a tresler) que nao chama a atencao para a irritacao de Churchill e Roosevelt mas antes as dificuldades economicas relativas que cada pais neutral enfrentou durante o conflito. Muito informativo mesmo assim.
EliminarO segundo texto ja o tinha lido mas e bem lembrado. esse sim, de facto mostra bem o estado de espirito de Churchill acerca da Irlanda. Noto com interesse numa segunda leitura a ideia avancada por Churchill de que a Irlanda do Norte (e por arrasto o processo de divisao da Irlanda) permitiu a adolescente Republica manter a sua independencia durante a Guerra porque de outra forma o Reino Unido teria sido obrigado a invadir a ilha para manter controlo sobre o Atlantico norte.
Ja agora, por curiosidade, que apoio (se e que algum houve) e que a Irlanda proporcionou aos aliados?
O propósito do texto a que se refere no primeiro parágrafo não tem especificamente a ver com as antipatias de Churchill ou de Roosevelt, mas a de chamar a atenção que para o irlandês comum a opção pela neutralidade teve um preço em incomodidade superior ao que teria se a Irlanda tivesse, como os outros países da Commonwealth (Canadá, Austrália, etc.) declarado guerra à Alemanha.
ResponderEliminarQuanto à sua pergunta final é preciso esclarecer que os gestos adoptados pelos neutrais em que eles tomavam partido por um dos lados foram normalmente gestos discretos para não provocar a parte contrária.
Mas, por exemplo, os pilotos aliados que, por uma qualquer razão, vieram a aterrar na Irlanda (com ou sem avião) foram, depois de um período "decente", devolvidos à precedência e ao combate, em vez de ficarem internados até ao fim do conflito, conforme determinam as leis internacionais a esse respeito.
Ora isso não acontecia nos casos mais raros de pilotos alemães - é um facto relativamente desconhecido que Dublin chegou a ser bombardeada durante a guerra, por engano disse-se, um engano que ainda hoje está sujeito a especulações.
Suponho que não o surpreenderá se acrescentar que na Suécia, pelo menos até 1943-44, acontecia precisamente o mesmo, só que ao contrário: eram os pilotos alemães que desapareciam dos locais de internamento. Só que, dado o desfecho da Guerra, isso é pormenor que hoje não ilustra os suecos e que eles não farão, compreensivelmente, grande questão em realçar.
Mas o que é perfeitamente inadmissível e sintomático de uma certa mediocridade intelectual da historiografia portuguesa é como pessoas que por cá se arrogam como especializadas na história de Portugal destes anos, não fazerem a mínima ideia do que foi a realidade europeia nesse mesmo período. Exibem fotografias de filas para senhas de racionamento em Lisboa durante os anos da guerra - e a culpa é, naturalmente, de Salazar - omitindo que as havia em Estocolmo, em Zurique ou em Dublin. Em Londres, a capital de um dos países vencedores, ainda as houve por anos depois de terminada a guerra...
A propósito dessa ignorância, e se ainda o não tiver feito e se a isso se dispuser, sugiro que leia este link (http://herdeirodeaecio.blogspot.pt/2012/08/vidas-dos-europeus-no-ano-do-superavit.html) especialmente o comentário de Irene Pimentel que se lhe segue: raramente vi alguém enforcar-se com tanta destreza na sua própria ignorância!
Obrigado.
EliminarJa tinha lido esse com os comentarios da Irene Pimentel porque esse post esta linkado num destes aqui relacionados com a Irlanda. Ela abordou o pelo angulo errado e perdeu uma boa oportunidade para estar calada, dito isto, como nao sou eu proprio imune a calinadas de semelhante indole, escuso-me a passar julgamentos.
A critica que creio que se pode fazer a Salazar sobre tal periodo e de um outro angulo. Sendo certo que tendo em conta a escala do conflito e as pressoes a que todos os neutrais estiveram submetidos, algum grau de stress e sofrimento era inevitavel e fora do controlo dos seus governantes. Tambem e verdade que o grau de sofrimento estava dependente das infraestruturas e instituicoes que cada um desses paises tinha "a priori", ou seja, o quao robusto era o pais para fazer face as vicissitudes do conflito e nesse aspecto creio que o atraso portugues contribuiu para o problema. Ora o atraso portugues - refiro-me especificamente a tardia revolucao industrial portuguesa - foi em grande medida mantido e fomentado pelo regime de Salazar como estrategia de sobrevivencia do regime.
Só quero deixar a achega que aquilo que é normalmente considerado vantajoso deixa de o ser em situação de guerra.
ResponderEliminarUm parque industrial desenvolvido num país pequeno pressupõe uma economia muito aberta ao exterior e uma enorme dependência do comércio externo: afinal os relógios suíços eram vendidos mundo fora. Ora esse comércio externo é reduzido a mínimos em caso de conflito generalizado e as prioridades de todos os países têm de ser redireccionadas para o que se torna essencial: alimentação e energia – e o esforço de guerra nos países beligerantes.
Ao contrário da Suíça (ou num grau menor da Suécia), que tinham que importar alimentação e energia para a sua indústria, a falta de industrialização da Irlanda e a sua condição de produtor de alimentação para o Reino Unido dava-lhe um outro grau de independência.