14 janeiro 2021

O DISCURSO DE SÁ CARNEIRO

Lisboa, 14 de Janeiro de 1971. Numa sessão da Assembleia Nacional que fora inicialmente concebida para decorrer a «meio gás» como era tradicional (75 deputados presentes em 130), os trabalhos foram dominados por um discurso do deputado Sá Carneiro a respeito da Concordata, discurso que ao fim da tarde já aparece destacado nas primeiras páginas de alguns vespertinos, devidamente transcrito nos trechos mais significativos e contundentes para o poder. Para que se possa transportar mais facilmente o leitor de agora para a posição do de há cinquenta anos, procedi à transcrição na íntegra da notícia acima, que, como se percebe na imagem acima, prosseguia no interior do jornal:

« A revisão da Concordata entre o Governo português e a Santa Sé foi esta tarde pedida, na Assembleia Nacional, pelo deputado Sá Carneiro, para que se ponha termo a «mal-entendidos, ambiguidades e situações injustas» «O Estado português admite o divórcio; logo deve reconhecer o respectivo direito a todos os portugueses, independentemente da fé que professem» - disse o deputado, acrescentando que, à Igreja, porque condena o divórcio, compete, no plano moral, procurar afastar dele todos os homens. Na sua intervenção, uma das mais ousadas até agora escutadas no hemiciclo de São Bento, o deputado Sá Carneiro, figura de relevo nos meios católicos do Porto, recordou o contexto em que, em 25 de Maio de 1940, o Presidente Salazar apresentou á Assembleia Nacional a Concordata: «O Presidente do Conselho afirmou expressamente o carácter anticomunista, antidemocrata, antiliberal, autoritário e intervencionista do regime» - frisou Sá Carneiro. Salientou o orador que «a existência de acordos com a Santa Sé não deriva do carácter tradicionalmente católico da Nação», pois pode, «pelo contrário emergir de conflitos a solucionar e, até, de uma certa hostilidade á Igreja», ou ainda, «da inexistência de reais liberdades fundamentais». «Em França, como em muitos outros países de população predominantemente católica, a Igreja vive saudável, pujantemente, sem concordata, enquanto acordos desse tipo em países comunistas» - salientou Sá Carneiro. Segundo o deputado, a Concordata vigente é do tipo das que visam a «regulamentação do conjunto de relações entre a Igreja e o Estado», como o são «as estabelecidas com os Estados em que, por razões da direita ou da esquerda, não se encontra assegurado o exercício efectivo das liberdades fundamentais». «No nosso caso, o acordo estabelecido em 1940 visou a regulamentação geral das relações entre a Igreja e o Estado e o saneamento de uma série de pendências anteriores, cuja solução havia sido antes tentada sem resultado; mas teve também como fim colocar a Igreja em posição excepcional pelo que se refere ao exercício de algumas liberdades» - afirmou o orador, lembrando que «no mesmo dia em que a Constituição de 1933 iniciou a sua vigência, surgem os decretos do Governo, ainda hoje em vigor, relativos á supressão de liberdade de expressão de pensamento pela Imprensa e o condicionamento estrito do direito de reunião, completados depois por toda uma legislação fortemente restritiva, e frequentemente impeditiva do exercício das liberdades enunciadas no art.º 8º nº2 da mesma Constituição». O dr. Sá Carneiro disse ainda que «se toda essa legislação referente aos direitos de expressão de pensamento, do ensino, da reunião e da associação fosse estritamente aplicada á Igreja e ao culto católico, desapareceria para os católicos a liberdade religiosa, que não tem existido para os fiéis de outras confissões». Recordando ainda, as circunstâncias e as concepções da época em que foi assinada a Concordata, o orador disse acreditar que «essas não são as concepções de hoje, nem para a Igreja, nem para o Estado», apontando as perspectivas abertas pelo Concílio Vaticano II e a atitude do próprio Governo português «especialmente ante as propostas de lei de revisão da Constituição, (...) da referente á liberdade religiosa». Por outro lado, abordando o problema do divórcio, o deputado Sá Carneiro, um dos mais proeminentes membros da ala liberal da actual Câmara, disse que «em matéria de dissolução do casamento, os portugueses estão sujeitos a uma dualidade de estatutos: há divórcio para uns, mas não o há para outros». Sublinhando que essa «dualidade» tem como fundamento «a fé que explicitaram ao adoptar a forma canónica para o seu casamento», Sá Carneiro lembrou que «podem abandonar essa fé, converter-se a outra religião, tornarem-se ateus», mas «ficarão sempre vinculados a essa opção, ficarão sempre privados de um direito que é reconhecido aos demais». O problema dos filhos dos casais nessas circunstâncias foi também evocado pelo orador, dizendo que «a desigualdade estabelecida pela actual solução, que traduz imposição civil em matéria religiosa e ingerência da Igreja em matéria civil, conduz assim, a desigualdades chocantes na vida corrente, em que casais e filhos na mesma situação de facto, são havidos como legítimos uns e ilegítimos outros».»

O texto pode ser extenso e denso pelos padrões de leitura das redes sociais de agora, mas o que eu queria que se concluísse, sucintamente e pelo que acima se lê, é que para se ser o Sá Carneiro do século XXI é preciso ter, pelo menos, uma consistência intelectual que André Ventura não tem.

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