Lembrei-me do discurso dos «Rios de Sangue» de Enoch Powell por causa do artigo de opinião (Podemos? Não, não podemos) de Fátima Bonifácio, este Sábado, no Público. Enoch Powell era um deputado conservador britânico que se celebrizou por há cerca de cinquenta anos ter proferido um discurso numa reunião política do seu partido em Birmingham em que se mostrava particularmente crítico e alarmista para com as consequências da imigrações negra e indiana que então começavam a fazer sentir significativamente o seu peso na sociedade britânica. A expressão que lhe granjeou o título não é expressamente usada no discurso, mas Erich Powell, que fora um erudito, antigo professor de grego clássico (e, nesse aspecto, não muito diferente de Fátima Bonifácio...), socorre-se de uma passagem da Eneida de Virgílio, numa passagem em que este descreve o Tibre espumando com o sangue em consequência das guerras civis. O discurso de Powell é extenso, bem mais extenso do que o artigo de Fátima Bonifácio, mas os dois compartilham a mesma presunção arrogante de que há comunidades que não são assimiláveis, e ambos o dizem com uma crueza que induz a uma reacção proporcionada da parte de quem lê/ouve e discorda do conteúdo. O estilo é bruto e predispõe a uma reacção também bruta. Não sei se a reacção ao texto de Fátima Bonifácio terá uma repercussão maior, mais significativa e mais duradoura do que as tradicionais ressonâncias das redes sociais. Até pode ser que, depois da animação de fim de semana, tudo já esteja esquecido lá pela quarta-feira de cinzas.
Mas, porque o discurso dos Rios de Sangue teve uma continuação, vale a pena contá-la. O líder (Edward Heath) e a direcção dos conservadores da época ostracizaram ostensivamente Enoch Powell, muito embora sondagens lhe dessem uma grande popularidade. Em 1974, não o deixaram apresentar-se pelo seu círculo tradicional de Wolverhampton South West. Mas Powell acabou por ser eleito por um círculo unionista da Irlanda do Norte. Entretanto, com a entrada da década de 80, aproximaram-se os prazos de 15 a 20 anos em que ele previra a existência de uma ingerível massa de três milhões e meio de imigrantes vindos de países da Commonwealth que iria fazer desmoronar a sociedade do Reino Unido. Houve muitas outras convulsões sociais naquele país (as greves dos mineiros), mas não as de cariz racial que ele previra. Perdeu a eleição em 1987 e não voltou a apresentar-se. Morreu em 1998. Num retoque final de ironia, e na primeira vez que aquele que fora o seu círculo tradicional de Wolverhampton South West foi recuperado pelos conservadores, em 2010, o candidato conservador eleito para o lugar que fora de Powell chamava-se Paul Singh Uppal, um sique cuja família imigrara da África Oriental britânica. Os siques haviam sido uma das comunidades visadas expressamente por Enoch Powell no seu famoso discurso: «'The Sikh communities' campaign to maintain customs inappropriate in Britain is much to be regretted.» Não sei se o artigo de Fátima Bonifácio chega a merecer ser esquecido com esta mesma pompa...
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