A história do Paraguai independente terá começado em 15 de Maio de 1811 quando uma junta governativa de Asunción derrubou a administração colonial espanhola. Numa segunda fase, os membros dessa mesma junta entraram em conflito com a sua homóloga de Buenos Aires, que fora a sede do antigo Vice-Reino do Rio de La Plata, vice-reino que incluíra também o Paraguai, e que agora se tornara na capital da nova República Argentina. Foi só em 1814 que o estatuto como país independente do Paraguai se consolidou, depois de várias operações militares para o tentar subalternizar a Buenos Aires e da manutenção de uma persistente campanha diplomática em que a nova Argentina se recusava a reconhecer a independência paraguaia. País interior, com as vias naturais de contacto com o exterior totalmente dependentes de terceiros países que se mostravam assim hostis à sua existência (como se pode apreciar abaixo pelo mapa da bacia hidrográfica do rio da Prata), as circunstâncias levaram o novo país a forjar uma mentalidade de um isolacionismo defensivo, senão mesmo hostil ao exterior. E é neste ambiente peculiar que desponta uma daquelas interessantíssimas (mas ignoradas) figuras da história mundial, o Doutor José Gaspar Rodríguez de Francia (1766-1840).
O Paraguai colonial nunca despertara particularmente a atenção da emigração espanhola que partia para o Novo Mundo. Mas, como em todo o resto do continente, possuir-se uma ascendência europeia era um activo social cobiçado e a grande maioria dos espanhóis que ali assentavam acabavam casando com filhas de famílias bem instaladas da sociedade local, muitas delas de pura ascendência guarani. Mas os europeus puros em idade casadoira eram escassos e, quando em meados do Século XVIII um qualificado técnico de preparação de tabaco vindo do Rio de Janeiro mas de irrepreensível origem portuguesa chamado Garcia Rodrigues de França se instalou em Asunción, aconteceu-lhe precisamente isso. Do consórcio com uma filha de um ambicioso casal local, nasceu o prometedor José Gaspar que, destinado a uma carreira eclesiástica, afinal nunca chegou a tomar os votos mas que, mesmo assim, se doutorou em Teologia pela Universidade de Córdoba (Argentina) aos 19 anos, conferindo-lhe um grau académico que não mais abandonou como forma de apresentação no futuro. Aliás, durante décadas, ele foi um dos dois únicos paraguaios a possuí-lo. Há algo de estranhamente napoleónico na sua ascensão política. Como o corso, que era francês de primeira geração, também este paraguaio ambicioso e inteligente mas filho de pai estrangeiro, começou em 1813 por ser um dos Cônsules (à moda romana), alternando quadrimestralmente o poder com o seu colega, passou a ser Cônsul único em 1814, depois dotado de poderes ditatoriais por um período de três anos, para em 1816 se tornar Ditador Perpétuo da República, título que manteve até ao fim da vida. Todas estas etapas foram, como acontecera em Paris, legitimadas por assembleias expressamente reunidas para o efeito. Porém, Francia nunca se coroou.
Por muito esclarecida e impregnada do espírito das luzes que fosse a actuação política do Doutor Francia, e este foi, indiscutivelmente e apesar de todo o despotismo, um discípulo das ideias de Rousseau e das práticas de Robespierre e Napoleão, a sociedade paraguaia dos princípios do Século XIX nada tinha a ver com a francesa ou mesmo com a da metrópole espanhola. A sua relativa inacessibilidade geográfica fizera perpetuar-se relações de trabalho que já haviam sido abolidas noutras regiões da América Latina. Aliás, aquilo que os espanhóis vieram a baptizar por encomienda, uma relação de trabalho dependente a roçar a escravatura, no caso da sociedade guarani, tecnologicamente mais avançada do que a dos índios recolectores que a cercavam, ela já existia antes da chegada dos espanhóis ao Paraguai no Século XVI. A perspectiva de Francia era que, perante uma sociedade praticamente desmonetarizada como a paraguaia o liberalismo preconizado pelos novos tempos teria um efeito arrasador. E os promotores da adopção desse liberalismo, e por consequência os seus opositores políticos, seriam a elite ilustrada de ascendência caucasiana donde o próprio Doutor Francia era originário. A forma como uma conspiração oriunda dessa elite (conhecida por crioulos) que teve lugar em 1820 foi reprimida está cheia de pormenores macabros. Também a história do comportamento social de Francia, escrita necessariamente por essa mesma classe, está repleta de pormenores assustadoramente bizarros. Mas, por outro lado, depois dessa conspiração, o seu poder ter-se-á tornado indisputado até à sua morte, que só veio a ocorrer 20 anos depois.
A popularidade (a haver alguma…) de Francia residiria num outro extracto social. O Paraguai que ele queria criar terá sido um dos primeiros esboços de um estado benevolamente totalitário para os mais humildes, uma reminiscência inspirada pelos espíritos das luzes das sete missões fundadas pelos jesuítas ao longo dos Séculos XVII e XVIII que adquiriram fama hollywoodesca (com os bons, os maus, mas nenhuns assim-assim) através do filme A Missão (acima). Como a maioria da terra agrícola no Paraguai pertencera à Coroa ou à Igreja ou ainda a latifúndios de vários crioulos que entretanto haviam sido despojados dela, o objectivo da sociedade de Francia era propiciar o pleno emprego na agricultura, produzindo-se para exportação açúcar, chimarrão, madeira, tabaco e couro, mas com uma preocupação principal de que a produção agro-pecuária assegurasse a auto-suficiência do país. Havia um esforço de planificação, a possibilidade de os agricultores independentes poderem importar bens de consumo, por exemplo, dependia da sua capacidade em atingir as quotas de produção que lhes haviam sido definidas. Para que isso fosse eficaz, também o comércio externo era totalmente controlado, uma prática que, vale a pena recordar, era apenas a continuação da que existira durante os tempos coloniais. No seu computo global, o Paraguai do Doutor Francia era uma ditadura feroz cujo republicanismo de pretensas raízes democráticas se devia apenas, como referi acima, ao facto de José Gaspar Rodríguez de Francia não ter querido copiar Napoleão até ao fim, até à coroa imperial, e de não ter querido deixar sucessor. Adequando as suas necessidades àquilo que podia produzir, nos meados do Século XIX o Paraguai atingira praticamente o nível da autarcia e uma independência estratégica invejável. Só com essa independência se pode perceber como o Paraguai se pôde engajar numa guerra durante seis anos (1864-70) contra uma coligação composta por três inimigos aparentemente tão mais poderosos: Argentina, Brasil e Uruguai - mas isso já será uma outra história…
José Gaspar Rodríguez de Francia, este luso-descendente de que quase nós todos, portugueses e brasileiros ,desconheceremos a existência, é um daqueles raros engenheiros sociais dos tempos modernos (como o foi também, por exemplo, o norte-coreano Kim Il Sung) que tiveram a oportunidade de construir uma sociedade de acordo com as suas convicções em países de pequena/média dimensão e com o privilégio acrescido de terem morrido descalços. Não se entenda desta síntese que aqui faço uma defesa do autoritarismo visionário com laivos de republicanismo: recorde-se um caso como o de Pol Pot e do Camboja, que nos chama a atenção de que deixar tudo dependente da personalidade de um ditador pode resultar num terrível genocídio. Do ponto de vista estritamente histórico, contudo, há que reconhecer que, em termos de estabilidade e de progresso material, a história dos primórdios desta ditadura personalizada do Paraguai se compara com vantagem com as ditaduras oligárquicas do mesmo período da maioria dos países sul-americanos de colonização espanhola.
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