02 maio 2014

A IMPORTÂNCIA DE SE SER IVÃ III

Ivã III o Grande (1440-1505), o primeiro soberano de Moscovo a atribuir-se o título de tsar, é muito menos conhecido do que o seu neto e homónimo que ganhou a alcunha de Terrível, mas talvez a sua história nos ajude a perceber melhor o que poderão ser as intenções do seu ainda mais longínquo sucessor Vladimir Putin (1952- ). Conhecendo os desenvolvimentos, não deixa de ser irónica a constatação de que a ideia do casamento de Ivã com Sofia Paleólogo (1445-1503), a sobrinha de Constantino XI, o último imperador de Constantinopla, partiu de um Papa, Paulo II. A ideia do Papa era reunificar o cristianismo romano e ortodoxo e que o futuro marido de Sofia viesse a colaborar com o Ocidente numa próxima cruzada contra os turcos, já então instalados nos Balcãs e senhores de Constantinopla. Mas a ideia do que Ivã pretendia com o casamento era completamente distinta: Sofia foi rebaptizada no rito ortodoxo antes de casar em 1472 e a comitiva que a acompanhava vinda de Roma obrigada a adoptá-lo também. Para Ivã III, que já tinha filhos de um primeiro casamento e um ego descomunal, a presença de Sofia a seu lado era um mero instrumento de propaganda, que lhe permitiu começar a designar-se por tsar de todas as Rússias, um título que (era uma corrupção de pronúncia mas que também) possuía as ressonâncias longínquas do título romano de Caesar. Tanto assim que, quando o Imperador (do Sacro Império Romano Germânico) Frederico III de Habsburgo (1415-1493) se ofereceu para elevar Ivã III da categoria de Grão-Príncipe à de Rei, recebeu uma resposta desdenhosa, onde o distinguido se recusava a reconhecer a Frederico qualquer autoridade para conferir a distinção. Melhor: quando recebeu uma proposta para o casamento de uma das filhas com um sobrinho de Frederico, Cristóvão, o Margrave de Baden, recusou-a com o fundamento que a sua linhagem era mais antiga que a dos Habsburgos. Em crescendo, o Arcebispo Metropolita de Moscovo, Zósimo o Barbudo reinventou uma narrativa de um piedoso e cristianíssimo tsar Ivã, um novo Constantino de uma terceira Roma. E a promoção da causa ainda não acabara, mostrando que a imaginação propagandística russa não é um produto científico do marxismo-leninismo, antes a precede: no final do reinado de Ivã, trabalhava-se numa genealogia que o fazia descendente de um irmão mítico de Augusto, o primeiro Imperador romano! Sofia, apesar do seu papel inicialmente discreto, acabou por se vir revelar fundamental para a preservação deste embrião do império russo, quando conseguiu que o seu filho Basílio III (1479-1533) herdasse o trono sem as tradicionais contestações medievais entre irmãos.
Esta hipersensibilidade russa ao reconhecimento da importância do seu estado e do seu monarca terá mais de cinco séculos mas nunca se perdeu e permanece mais aguda que nunca. Napoleão, por exemplo, jogou com ela em 1807 ao assinar o Tratado de Tilsit com Alexandre I da Rússia (acima), quando fazia os seus soldados tratarem-nos respectivamente por Imperador do Ocidente e Imperador do Oriente. Alexandre adorava. Só depois Napoleão invadiu a Rússia quando se apercebeu que nem assim conseguia forçar a vontade de Alexandre I. Porém, em contraste vincado, desde a Administração Clinton, que os norte-americanos não se têm aplicado em mesuras para com Putin e os russos. E como se vê por aquele exemplo do Século XV está na sua genética quererem ser levados a sério. Mesmo quando são apreciados pelas piadas que dizem...

1 comentário:

  1. Curiosa genealogia, a que vai até Augusto. Sabia que o título de "Terceira Roma" (depois da autêntica e de Constantinopla) advinha desse casamento com uma das últimas princesas bizantinas, mas desconhecia completamente c criação do mito retroactivo. Realmente explica muita coisa, como também se explica a admiração de Estaline por Ivan IV.

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