15 maio 2014

HISTÓRIA ECONÓMICA DE UM DECÉNIO NO CHILE (1973-1982)

Dedicado a um amigo e leitor fiel que me prometera um texto sobre o Chile… enquanto lá esteve.
A história do Chile para o português médio que se pretenda atento começa em 11 de Setembro de 1973. E acaba em 11 de Setembro de 1973. O lado intelectual da história advém da substituição do remate canónico do …e viveram felizes para sempre pela complexidade de …e um general de óculos escuros com mau aspecto (Augusto Pinochet, acima à esquerda) derrubou num golpe de Estado sangrento um senhor de óculos que até parecia muito simpático (Salvador Allende, à direita). Mais em profundidade, deve-se esclarecer que a violência desencadeada pelo golpe de 11 de Setembro de 1973 exerceu-se de duas formas. Em primeiro lugar, focou-se nos opositores políticos ao poder da junta militar: os membros e activistas dos partidos que apoiavam o governo de Unidade Popular que fora derrubado foram perseguidos acabando presos ou tendo de se esconder e fugir do país. Cerca de três mil dos que foram presos foram executados e cerca de trinta mil tiveram que se exilar. Este foi o lado da violência a que se deu mais visibilidade, em filmes como, por exemplo Missing (1982).

A segunda expressão de violência foi menos óbvia mas mais difusa e muito mais prolongada. A junta militar trazia consigo uma ideologia económica e estava determinada a fazer desaparecer o sector público da economia embora impondo a disciplina orçamental numa economia sob as regras de livre mercado. Todavia, depois de quarenta anos de um modelo de desenvolvimento que fora dirigido pelo estado e que também causava taxas de inflação cronicamente muito elevadas, o regresso brusco ao liberalismo económico com controle da inflacção provocou uma crise que provocou a pauperização de milhões. A privatização de uma apreciável parte do sector público, que se havia expandido na década anterior sob as presidências tanto do democrata-cristão Eduardo Frei como do socialista Salvador Allende, representou também um severo golpe nas organizações sindicais das indústrias nacionalizadas e da função pública. Aquelas características que se haviam tornado marcantes durante o período de desenvolvimento industrial chileno da década de 1930 e 1940, fosse o proteccionismo de altas tarifas aduaneiras à importação de produtos de que houvesse produção local, fossem subsídios directos à indústria local ou então o tratamento privilegiado dado ao capitalismo local, foram abolidas completamente. A partir de então, competindo com uma tarifa geral de 10% que incidia sobre todas as importações e com uma política de porta aberta indiscriminada para com os investimentos estrangeiros, as empresas chilenas confrontaram-se quase directamente com a concorrência internacional, obrigando-se a reduzir as suas estruturas de custos, a começar com os de pessoal e com necessidades abruptas de investimento e reconversão dos sistemas de produção. Também no sector agrário, o desemprego de mão-de-obra agrícola foi um subproduto da reversão das reformas naquele sector que haviam sido encetadas tanto sob Frei como sob Allende.
Em 1975, dois anos depois do golpe, no nadir da depressão que afectou o Chile, com os efeitos ainda mais acentuados pela recessão mundial desencadeada pelo aumento dos preços do petróleo decretada pela OPEP um mês depois do golpe, o PIB do Chile caíra 12,9% e a taxa de desemprego rondava os 17% (o triplo da que vigorara em média ao longo da década anterior), o que, considerada a inexistência disseminada de subsídios de desemprego, era sinónimo de uma extrema pauperização das classes mais baixas da sociedade chilena. A justificação oficial para a aplicação de todo este traumático programa ao país é que não havia alternativa se o Chile quisesse corrigir os alegados horrores do passado e evitar desastres ainda piores para o futuro. Os conselheiros económicos do general Pinochet eram jovens tecnocratas que haviam abraçado teorias económicas liberais que haviam ressurgido poucos anos antes, depois de décadas de keynesianismo. Muitos haviam estudado na Universidade de Chicago e consideravam-se discípulos de Milton Friedman (que viria a receber o Prémio Nobel da Economia em 1976), que era um reputado defensor da liberdade dos mercados e do emprego de uma política monetária para controlo da inflação. Segundo a opinião desses Chicago Boys, como os seus opositores ironicamente os tratavam, fora a contínua intervenção estatal na economia que causara os problemas endémicos da economia chilena, nomeadamente défices orçamentais descomunais, a consequente hiperinflação e uma estagnação endémica no crescimento. O Chile devia ser assim o primeiro país latino-americano a procurar regressar aos princípios económicos liberais clássicos que haviam saído de moda depois do crash de 1929 e da depressão que se lhe sucedeu. O regime militar de que Pinochet era a figura de proa embarcou assim numa aventura em prol da reconversão da economia chilena ao capitalismo primevo com um empenho ideológico que parecia ironicamente simétrico àquele que o regime de Allende colocara na transição para o socialismo e que Pinochet derrubara em Setembro de 1973. A diferença substantiva nos dois processos revolucionários em curso é que Pinochet era um cínico, muito menos marxista mas muito mais leninista do que Allende, e nunca se iludiu quando à forma como estas revoluções ideológicas se impõem: só têm sucesso à força, quando se destrói a oposição.
Muito embora a tecnocracia prometesse que as políticas liberais iriam levar a uma recuperação rápida depois do período de recessão inevitável, os resultados daquelas políticas são, no mínimo, passíveis de interpretações mistas. Ao longo do quinquénio 1976-81 que sucedeu aos anos de choque, a inflação desceu de uns impressionantes 508% em 1973 para uns ainda preocupantes 31,2% em 1980, para se situar nuns muito mais razoáveis 9,5% em 1981; o crescimento do PIB médio, depois da debacle de 12,9% mencionada mais acima, cifrou-se nuns impressionantes 8% ao ano, impulsionado por um sector exportador que se diversificou da tradicional (70%) exportação de minério de cobre que se tornara a imagem internacional do Chile; mas, em contraste, durante todo esse tempo a taxa de desemprego não baixou significativamente dos 17% (que também acima se referiram) e o crescimento real do valor dos salários foi significativamente abaixo do registado pela economia. Analisando-a em termos sociais e de distribuição da riqueza, a recuperação económica fora muito desigual. Durante esse mesmo período de 1976-81, os 20% de chilenos mais ricos tiveram um padrão de consumo de produtos essenciais equivalente ao que haviam tido em 1969, enquanto os 20% mais pobres sofreram uma redução acentuada de 20% em relação ao mesmo índice de 1969. Uma componente apreciável do aumento do consumo gerado pelos rendimentos da recuperação aplicou-se na importação de produtos de luxo, que cresceu cerca de 300% em relação aos valores de 1970; como seria de esperar, mais de 50% desses produtos destinavam-se aos mesmos 20% de chilenos mais ricos. O crescimento económico serviu para aumentar as assimetrias na distribuição da riqueza dentro da sociedade chilena. Mas o que importa é que, mesmo esta redistribuição assimétrica, acabou por ser totalmente posta em causa em 1982 quando uma nova recessão ainda pior que a anterior e que os ideólogos do regime já não conseguiram atribuir a Allende e aos antecessores, fez o PIB chileno cair 14,3% e a taxa de desemprego subir para uns arrepiantes 23,5%, números a fazer lembrar a grande depressão norte-americana da década de 1930 ou os SA da Alemanha nazi. Ironicamente, em Janeiro desse mesmo ano de 1982 em que a economia chilena iria registar essa contracção record de 14%, Milton Friedman ainda publicara um artigo na Newsweek onde cunhara a expressão de Milagre Chileno.
O Chile milagroso foi provavelmente um dos países mais afectados pela recessão mundial desse princípio da década de 1980, que havia sido provocada originalmente pela revolução iraniana e pelo segundo choque petrolífero. O país tornou-se na vítima do experimentalismo entusiasmado dos discípulos do académico de Chicago e das convicções nas vantagens da desregulação económica que tornaram aquela economia sul-americana extremamente vulnerável às flutuações dos mercados de capitais internacionais. Além disso, os esforços despendidos para controlar a inflação, indexando o peso local ao dólar norte-americano, prolongaram-se por tempo demasiado depois da eclosão da crise mundial, prejudicando as exportações, facilitando em demasia as importações, ampliando o défice externo e agravando essa dívida. A tão publicitada liberalização permitiu a fácil fuga dos capitais num momento de instabilidade financeira: como o aumento do consumo das classes mais elevadas (referido mais acima) fora financiado sobretudo com recurso a capitais estrangeiros, o sector financeiro chileno praticamente colapsou, quando os donos desses capitais os recuperaram preventivamente trazendo-os para os seus países de origem. De uma forma mais evidente ou de formas mais encapotadas o estado teve que intervir nos dois maiores bancos chilenos em 1982 e em mais outros sete bancos no ano seguinte. Por ironia e necessidade, a banca chilena daquela época quase poderia rivalizar com a banca portuguesa depois das nacionalizações do nosso PREC depois do 11 de Março de 1975…
A assunção das dívidas dos bancos como dívida pública criou um problema adicional. A dívida externa do Chile triplicara: passara de 6,6 mil milhões de dólares em 1978 para 18,4 mil milhões em 1984. Em 1985 esse valor correspondia a 141,5% do PNB, proporcionalmente o maior da América Latina. O valor dos juros anuais da dívida equivalia a cerca de metade do valor das exportações chilenas. Um por um e como pinos de bowling, os rapazes de Chicago mais ideologicamente entusiasmados foram caindo e saindo de cena, para dar lugar a economistas que, mesmo oriundos da mesma escola de pensamento económico, se mostravam muito mais pragmáticos e por isso capazes de resolver os problemas económicos, financeiros e sociais que todo aquele experimentalismo causara e que era penoso suportar, apesar, não esqueçamos, de se viver sob ditadura militar e de a contestação social ser ferozmente reprimida. A história económica do Chile prosseguiu, mas o que importa realçar deste decénio que se seguiu ao golpe de Setembro de 1973, é o paralelo que dela podemos traçar com aquilo que tem vindo a acontecer nos últimos três anos em Portugal.
Não é apenas a coincidência do discurso ideológico, onde impera a mesma pretensa ausência de alternativas no caminho a percorrer, com uma descrição semelhante dos horrores do que aconteceu no passado e a mesma bondade de que o que se pretende implementar é uma melhor preparação para o futuro. O exemplo do que aconteceu no Chile é a demonstração, para quem a queira aprender, que o futuro não pertence a ninguém e que, a acontecer uma nova crise, cuja eclosão a todos nos escapa, todos aqueles enconados que agora se congratulam e nos andam a prometer loas pelos sucessos que terão conseguido sob este programa de resgate, desaparecerão num ápice debaixo do primeiro lugar onde se possam esconder. Mas a merda que fizeram cá ficará para outros limparem. Note-se que hoje já só os mais conhecedores destas coisas da história económica se lembram que outrora houve um grupo de economistas empreendedores chamado Chicago Boys a quem um general emprestou um país para brincarem…e acessoriamente mandarem umas centenas de milhares de compatriotas seus para a miséria.

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