07 outubro 2018

O QUE O MUNDO ESPERA(VA) DA AMÉRICA

Na edição em português de há cinquenta anos das Selecções do Reader's Digest - uma revista que era dada como um exemplo canónico da propaganda das opiniões americanas, sobretudo republicanas - aparecia um artigo que era a condensação de um discurso de George Champion (1904-1997), que era o CEO (para empregar uma expressão muito posterior) do The Chase Manhattan Bank, à época o terceiro maior banco do Mundo. Apesar de intitulado O Que o Mundo Espera da América (veja-se acima) o discurso/artigo era verdadeiramente interessante pelo que mostrava que as elites americanas esperavam que o Mundo esperaria delas e do seu país enquanto superpotência dirigente de uma das facções em que o Mundo se dividira.
«Uma viagem de negócios levou-me recentemente ao Japão, Coreia, Hong-Kong, Austrália e Vietname. Durante a viagem impressionou-me a maneira pela qual outras nações olham para os Estados Unidos em busca de liderança.
Olham para nós, americanos, à procura de um exemplo. Esperam que consigamos melhor do que ninguém corresponder a nossas responsabilidades.
Sabem bem o que dizemos que defendemos como nação: paz com justiça, liberdade, igualdade de oportunidades, respeito ao valor do indivíduo. Mas querem saber até que ponto correspondemos às nossas responsabilidades de ajudar o nosso próprio povo a alcançar esses objectivos.
Conhecem o nosso poder. Sabem que a indústria americana produz quase o dobro das mercadorias e serviços produzidos pelos países do Mercado Comum Europeu, mais a Grã-Bretanha; que um só estado americano, a Califórnia, produz mais do que toda a China Vermelha com os seus 750 milhões de habitantes; que a produtividade por operário nos Estados Unidos é 60% superior à da Alemanha Ocidental, 70% superior à da França e 80% superior à da Grã-Bretanha, e que algumas das nossas maiores empresas , como a General Motors e a American Telephone & Telegraph, têm receitas anuais maiores do que as de muitas nações industriais.
O que lhes cala mais fundo no espírito, porém, não é tanto a nossa riqueza e as nossas realizações materiais como as implicações desse poder. Querem saber se o nosso crescimento como povo pode acompanhar os ritmos dos nossos feitos materiais, se o carácter e a determinação dos Estados Unidos estão à altura do manejo dessa grande entidade que criamos: o estado mais poderoso de toda a História.
Preocupam-se com a nossa confusão em torno de padrões morais, com a existência de pobreza no meio da fartura, com o desemprego ao lado de lugares por preencher, com o declínio da qualidade do ambiente em que vivemos. Ficam abismados de saber que o crime nos Estados Unidos aumentou 60% nos últimos seis anos e que crimes graves ocorrem aqui à razão de cinco por minuto.
Sentem-se chocados com o desconcertante espectáculo de dissidentes que contestam publicamente os deveres de cidadania: de queima de cartões de recrutamento; do desacato a autoridades do governo; do espancamento e atentado a polícias; de insultos a recrutadores empresariais e militares nas universidades por turbas de estudantes; da facilidade com que se toleram agitadores a aconselharem o povo a "abrir fogo" e a instigarem a rebelião declarada contra o governo.
A ocorrência de tais coisas numa terra que oferece mais caminhos legítimos para a discordância do que qualquer outra nação do mundo é um paradoxo difícil de ser compreendido no exterior. "Que está a acontecer no seu país?", perguntam. "Está em marcha para a anarquia?"
Não é de surpreender que ponham em dúvida o nível moral da sociedade americana. Não que estejam inquietos com a maneira pela qual gerimos a nossa vida financeira. Um grande financeiro e bom amigo dos Estados Unidos disse-me no Extremo Oriente: "O seu país não pode continuar por muito tempo no caminho que está a seguir. Não pode continuar a viver acima dos seus recursos".
A realidade da inflação e o agravamento da situação da nossa balança de pagamentos estão inevitavelmente minando a confiança no dólar de que tanto dependem o comércio e a prosperidade do mundo. A inflação é um problema especialmente grave e há poucos sinais de melhoria à vista. Os reajustes salariais registaram em média um aumento de quase 6% em 1967, em comparação com cerca de 5% em 1966 e de 3% em média no período de 1960 a 1965.
Os avanços compensados da produtividade declinaram, reflectindo um crescimento económico mais lento. A produção por homem/hora na indústria aumentou apenas 1% em 1967, em comparação com uma média superior a 4% no período de 1960 a 1965. Os custos por unidade de produção aumentaram mais de 5% no ano passado. Os preços para os consumidores subiram 3%.
Uma inflação de 3% pode parecer à primeira vista insignificante. Mas 3% anuais representariam 35% acumulados em 10 anos - muito mais do que qualquer nação pode suportar sem se enfraquecer economicamente.
Quanto à situação da balança de pagamentos, o governo americano precisa reduzir as suas despesas no exterior. É claro que precisamos gastar o que for necessário no Vietname. Mas outras nações industriais podem perfeitamente arcar com maiores despesas para a defesa das suas regiões e para ajudar os países em desenvolvimento do mundo. Com efeito, uma divisão mais equitativa desses encargos é de há muito necessária. As pessoas com quem falei no estrangeiro compreendem isso e, mais ainda, não esperam que os Estados Unidos trabalhem sozinhos.
O que esperam de nós, porém, é uma participação pessoal que confirme o reconhecimento por nós, como indivíduos, de nossas responsabilidades - primeiro, como cidadãos americanos; segundo, como cidadãos do mundo. Refiro-me aquela participação que ocorre quando dizemos: "Olhe, este caso é importante para mim e vou fazer alguma coisa a respeito".
Um senso de responsabilidade individual é a chave de uma nacionalidade saudável. Olhemos o mundo actual. As nações prósperas são aquelas cujos sistemas económicos liberam toda a energia, capacidade, carácter e iniciativa do povo, e lhe dão a liberdade de aproveitar ao máximo as oportunidades.
O Japão é um exemplo de primeira ordem. Tendo dobrado a sua produção per capita em apenas sete anos, o Japão espera que o aumento se mantenha num ritmo constante. Qual é o misterioso ingrediente que permite a esse país liderar o mundo em índice de crescimento? Não é decerto a riqueza natural da terra, pois o Japão importa hoje a maior parte das suas matérias primas industriais e quase três quartos das suas fontes de energia. Estou convencido de que a explicação está no carácter do povo japonês, na sua disposição para trabalhar, sacrificar-se e lutar pela melhoria.
Quanto mais depressa nós, nos Estados Unidos, começarmos a dar às pessoas ajuda e estímulo genuínos para que concretizem as suas aspirações, mais perto estaremos da solução dos nossos problemas nacionais. Devemos garantir a todo o nosso povo o acesso à educação, ao adestramento e ao trabalho construtivo - em lugar de reduzir milhões de pessoas à aceitação de esmolas do governo por toda a vida. Precisamos abandonar a filosofia parasitária que tem estrangulado o nosso vigor e a nossa ambição.
Este é, na minha opinião, o ponto fundamental das nossas futuras relações com os povos de outros países. Esses povos voltam-se para nós em busca de uma prova, pelo exemplo, de que o verdadeiro espírito da América continua a existir e florescer, que possuímos ainda como povo as virtudes que edificaram esta nação: a nossa energia, iniciativa e carácter; o nosso amor à liberdade; a nossa disposição para o sacrifício quando necessário; a nossa convicção de que todo o homem precisa ter a sua oportunidade; a nossa inclinação natural para aproveitar ao máximo os nossos recursos; o nosso inerente bom senso; a nossa compreensão e coragem e a nossa confiança em Deus. Tudo isso - e não as mercadorias - deve ser a nossa principal "exportação".
O que em essência o povo no exterior pergunta é: "Quer a verdadeira América fazer o favor de se levantar?" Já está bem em tempo de que nós, como indivíduos, nos levantemos. É tempo de mostrarmos às outras nações, por palavras e actos, o que realmente somos. Quando fizermos isso, teremos dado um importante passo para o exercício da verdadeira liderança mundial.»
Se o leitor tiver lido integralmente o texto - e convém recordar que ele já é uma sinopse publicada numa revista vocacionada para pessoas que tinham pouco tempo para ler - concordará que o que nele envelheceu foi apenas a realidade económica. A política global, os objectivos enunciados continuam a ser os mesmos. O Mundo mudou. Mas o esqueleto deste discurso poderia ter sido proferido por Donald Trump há semanas na assembleia geral da ONU. Sem gargalhadas, que Trump consegue acrescentar às coisas um retoque de ridículo que lhe é muito próprio, mas acompanhado de muito mais discretos bocejos. (a fotografia é de Danielle D'Ermo)

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