29 novembro 2017

A CARTA DE LORDE LANSDOWNE

29 de Novembro de 1917. Há cem anos aparecia publicada no diário britânico The Daily Telegraph uma carta aberta intitulada Coordenação dos Objectivos de Guerra dos Aliados. Tratou-se de uma carta destinada a tornar-se circunstancialmente importante, apenas para depois cair rapidamente num conveniente esquecimento. Mas, para compreendermos esse ciclo de importância é aconselhável conhecer quem a assinava. Começar por dizer que Lorde Lansdowne (1845-1927) nasceu em berço de ouro é uma banalidade. Henry Charles Keith Petty-Fitzmaurice (de seu nome) era tão nobre que possuía um título de nobreza distinto por cada um dos três reinos que então constituíam o Reino Unido: era marquês de Lansdowne em Inglaterra, conde de Kerry na Irlanda e ainda barão de Nairne na Escócia. Numa época em que extensão fundiária ainda tinha imenso significado, os títulos representavam uns 80.000 hectares espalhados pelas duas ilhas. E, nascido durante o longuíssimo reinado da rainha Vitória (1837-1901), Lorde Lansdowne representava um dos últimos exemplares de aristocratas naturalmente destinados à carreira política, que essa mesma época vitoriana veria a ser substituídos gradualmente pelos políticos de ascendência comum. Era o reflexo da evolução da sociedade e da política britânica, que, no período de vida do próprio Lorde Lansdowne, assistira a um crescimento do eleitorado efectivo de 0,5 milhão de eleitores na década de 1840 para os mais de 10 milhões que virão a votar nas eleições de 1918. Mesmo considerando esse facto, de que a carreira política de Lorde Lansdowne se deveria muito mais ao seu nascimento do que aos seus méritos, o percurso que o levara até ali, em finais de Novembro de 1917 era impressionante: fora Governador-Geral do Canadá (1883-1888), Vice-Rei da India (1888-1894), Secretário de Estado (ministro) da Guerra (1895-1900) e Secretário de Estado (ministro) dos Negócios Estrangeiros (1900-1905). Colocado em reserva depois da chegada dos liberais ao poder em 1905, tornara-se o líder dos conservadores na Câmara dos Lordes a partir daí. É com esse estatuto que o vamos encontrar quando do episódio da carta. A caminho de completar 73 anos, Lorde Lansdowne tinha, assim, uma opinião a que havia que conceder a devida atenção.

O título da carta (Coordenação dos Objectivos de Guerra dos Aliados) não é muito revelador sobre o seu conteúdo: trata-se de uma recomendação para que se estudasse seriamente as possibilidades de chegar a uma paz negociada com os impérios centrais. Se o verdadeiro sucesso das partes beligerantes nos três primeiros anos de guerra se limitara ao registo dos desgastes morais entre o inimigo, então, pela argumentação expressa na carta, os alemães haviam sido bem sucedidos com Lorde Lansdowne. Eis algumas passagens do documento:

«Não vamos perder esta guerra, mas o seu prolongamento vai arrastar consigo a ruína do mundo civilizado e um aumento acrescido do sofrimento humano que por ele já é actualmente suportado (...) Não se deseja o aniquilamento da Alemanha como uma grande potência (...) Não se procura impor sobre o seu povo (alemão) qualquer forma de governo que não seja da sua própria vontade (...) Não se tem qualquer desejo de negar à Alemanha o seu lugar no comércio mundial (...)»

A proposta foi muito mal acolhida, tanto pela esmagadora maioria da imprensa britânica como pelos círculos de poder. Neste meio, Lorde Lansdowne foi não apenas censurado como condenado e votado ao ostracismo. Na época, quando se deu destaque à sua proposta foi sobretudo para a desfazer, como aconteceu, por exemplo, com o escritor H.G. Wells, que atribuía um cunho fortemente sociológico às preocupações do proponente: «...é uma carta de um aristocrata que tem mais receio da revolução do que da desonra da Pátria». De facto, quando a carta foi publicada, a Revolução de Outubro na Rússia ainda não tinha um mês... e as preocupações de Lorde Lansdowne não deviam ser apenas dele mas também de muitos da sua classe... e não só no Reino Unido. A Primeira Guerra Mundial durou quase mais um ano e, na hora da Vitória (11 de Novembro de 1918), o episódio fora convenientemente esquecido porque no Reino Unido nunca se duvidara do desfecho da guerra.

Uma nota final. Há uma tremenda ironia em ler uma crónica actual no The Times defendendo Lorde Lansdowne e a sua carta, apresentando-o neste centenário como uma vítima da ditadura das opiniões, acusado de derrotismo, qualificado como traidor, quando fora esse mesmo jornal o inicialmente escolhido pelo próprio Lorde Lansdowne para publicar a sua carta em 1917. Se não o fez, foi porque o editor do The Times de então se recusou a fazê-lo.

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