Miguel Mir, foi um historiador espanhol dos finais do Século XIX, membro da Real Academia Espanhola, que pertenceu à Companhia de Jesus quando jovem para depois a vir a abandonar, tendo publicado uma naturalmente controversa História Interna Documentada da Companhia de Jesus. Nela, referindo-se aos exercícios espirituais ali praticados desde o tempo do fundador Inigo de Loyola, escrevia: Nenhum espírito, por mais forte que seja, pode resistir a esses exercícios, nenhum coração lhes pode ficar insensível. (…) Mas não há nenhum homem que, tendo vivido esses exercícios, não conserve, no mais íntimo da sua alma, uma cicatriz que nada pode apagar. Para quem tiver lido ou vier a ler o livro Foi Assim, de Zita Seabra, a analogia entre a descrição acima e a das experiências que ela descreve da sua vida na clandestinidade é flagrante.
É a mesma reacção de atracção e repulsão de Miguel Mir, onde se misturam facilmente os sentimentos de repúdio explícito com os de reconhecimento implícito do quadro de valores da organização que tão fortemente vincou os dois. Um exemplo que atravessa todo o livro de Zita Seabra é o da hierarquia, onde a autora se auto-classifica, pelo seu percurso, como pertencente à aristocracia vermelha, classificando e separando os militantes por grupos, como os de antes do 25 de Abril dos outros (como Jerónimo de Sousa ou Odete Santos), que nem se tornam seriamente dignos de verdadeira apreciação. Depois, entre os do antes, há a distinção entre os do interior e da clandestinidade e os do exterior, mais confortável (como José Casanova). A Zita Seabra só lhe faltavam os pergaminhos de alta nobreza vermelha (os anos de prisão), mas disso já ela não fala…
Porque creio que haverá muitas coisas que a autora escolheu que lá não estivessem, alguma delas que se souberam até, na altura, por outras fontes, como é caso da sua vida sentimental pessoal: o casamento com Carlos Brito. Sem esse enquadramento, a invocação dos episódios dos partos das suas filhas (significativamente, para uma dirigente comunista, ocorridos no Hospital Particular de Lisboa e não num estabelecimento do Sistema Nacional de Saúde…), torna-se até um pouco descabida: apareceram de geração espontânea ou inseminação artificial? Nota-se que a redacção e o critério de nomeação dos intervenientes se tornam progressivamente cada vez mais cuidadosos à medida que a história evolui o que afecta o interesse do livro, com os primeiros capítulos muito mais genuínos e espontâneos do que os últimos, terminando mesmo de uma forma penosa.
E ao terminá-lo, fiquei com a impressão que a questão nuclear de todo o livro acaba por ser, talvez involuntariamente, a figura de Álvaro Cunhal. A tese que Zita Seabra acaba por tentar fazer passar é que ela, mesmo derrotada e expulsa, tinha razão e Álvaro Cunhal não, por causa do seu leninismo. De um leninismo obtuso, a acreditar nas descrições de Zita Seabra, o que as torna duvidosas, porque muitos outros retratos fazem de Cunhal uma pessoa muito pouco obtusa… Mas o livro é interessante, apesar desse ajuste de contas, e não por causa dele. É interessante por corroborar aquilo que durante décadas se soube mas que apenas aguardava a penitência da confissão de alguém que tivesse tido proeminência naquela época: que, por exemplo, as pessoas identificadas na altura como muito próximas do PCP (como Vasco Gonçalves) eram-no de facto ou que o MDP/CDE era um partido fantoche…
São engraçadas as referências aos estatutos hierárquicos informais existentes dentro do partido, que, pela descrição, me pareceu fortemente estratificado, como mencionei acima (a aristocracia vermelha), como também é engraçada a falta de relevância dos conhecimentos teóricos do marxismo-leninismo para o recrutamento dos militantes (destacado pelo episódio Pacheco Pereira). Andar a tentar desmentir alguns destes episódios, alguns deles menores (como o da chegada de Cunhal…) e muitos deles já comprovados por outras fontes ou circunstancialmente é uma daquelas actividades que os comunistas guardam o segredo das vantagens de que se reveste: vale mesmo a pena manter por 50 anos (lembre-se o massacre de Katyn*…) a mesma versão para manter animados os militantes enquanto se mantêm a desconfiança de todos os não militantes?
Confianças e simpatias à parte, não quero deixar de registar as referências à reputada capacidade de trabalho dos dirigentes comunistas em geral, tal qual os descreve Zita Seabra, num elogio em que é generosa. Mas sempre me intrigou como, se bem interpretei e se bem me ensinaram a teoria económica marxista do valor trabalho, toda aquela dedicação que os prendia durante dezenas de horas por dia, incluindo fim de semanas, tinha um valor rigorosamente nulo… Defender uma teoria cuja faceta económica classifica o valor do seu trabalho em coisa nenhuma parece ser uma contradição que não os incomodou... Quanto ao livro, e ao seu título (Foi Assim) a nossa opinião é que, se calhar, não terá sido tudo bem assim, mas consideramos que o livro regista um resultado positivo e que a verdade terá reforçado globalmente as suas posições, por muito desagrado que o PCP oficial manifeste.
* Massacre perpetrado em 1940 pelos soviéticos sobre 15.000 oficiais polacos que haviam sido aprisionados no começo da Segunda Guerra Mundial. O massacre foi depois imputado aos alemães, versão que se perpetuou até 1990, quando os soviéticos – sob Gorbatchev – reconheceram finalmente a sua autoria.
É a mesma reacção de atracção e repulsão de Miguel Mir, onde se misturam facilmente os sentimentos de repúdio explícito com os de reconhecimento implícito do quadro de valores da organização que tão fortemente vincou os dois. Um exemplo que atravessa todo o livro de Zita Seabra é o da hierarquia, onde a autora se auto-classifica, pelo seu percurso, como pertencente à aristocracia vermelha, classificando e separando os militantes por grupos, como os de antes do 25 de Abril dos outros (como Jerónimo de Sousa ou Odete Santos), que nem se tornam seriamente dignos de verdadeira apreciação. Depois, entre os do antes, há a distinção entre os do interior e da clandestinidade e os do exterior, mais confortável (como José Casanova). A Zita Seabra só lhe faltavam os pergaminhos de alta nobreza vermelha (os anos de prisão), mas disso já ela não fala…
Porque creio que haverá muitas coisas que a autora escolheu que lá não estivessem, alguma delas que se souberam até, na altura, por outras fontes, como é caso da sua vida sentimental pessoal: o casamento com Carlos Brito. Sem esse enquadramento, a invocação dos episódios dos partos das suas filhas (significativamente, para uma dirigente comunista, ocorridos no Hospital Particular de Lisboa e não num estabelecimento do Sistema Nacional de Saúde…), torna-se até um pouco descabida: apareceram de geração espontânea ou inseminação artificial? Nota-se que a redacção e o critério de nomeação dos intervenientes se tornam progressivamente cada vez mais cuidadosos à medida que a história evolui o que afecta o interesse do livro, com os primeiros capítulos muito mais genuínos e espontâneos do que os últimos, terminando mesmo de uma forma penosa.
E ao terminá-lo, fiquei com a impressão que a questão nuclear de todo o livro acaba por ser, talvez involuntariamente, a figura de Álvaro Cunhal. A tese que Zita Seabra acaba por tentar fazer passar é que ela, mesmo derrotada e expulsa, tinha razão e Álvaro Cunhal não, por causa do seu leninismo. De um leninismo obtuso, a acreditar nas descrições de Zita Seabra, o que as torna duvidosas, porque muitos outros retratos fazem de Cunhal uma pessoa muito pouco obtusa… Mas o livro é interessante, apesar desse ajuste de contas, e não por causa dele. É interessante por corroborar aquilo que durante décadas se soube mas que apenas aguardava a penitência da confissão de alguém que tivesse tido proeminência naquela época: que, por exemplo, as pessoas identificadas na altura como muito próximas do PCP (como Vasco Gonçalves) eram-no de facto ou que o MDP/CDE era um partido fantoche…
São engraçadas as referências aos estatutos hierárquicos informais existentes dentro do partido, que, pela descrição, me pareceu fortemente estratificado, como mencionei acima (a aristocracia vermelha), como também é engraçada a falta de relevância dos conhecimentos teóricos do marxismo-leninismo para o recrutamento dos militantes (destacado pelo episódio Pacheco Pereira). Andar a tentar desmentir alguns destes episódios, alguns deles menores (como o da chegada de Cunhal…) e muitos deles já comprovados por outras fontes ou circunstancialmente é uma daquelas actividades que os comunistas guardam o segredo das vantagens de que se reveste: vale mesmo a pena manter por 50 anos (lembre-se o massacre de Katyn*…) a mesma versão para manter animados os militantes enquanto se mantêm a desconfiança de todos os não militantes?
Confianças e simpatias à parte, não quero deixar de registar as referências à reputada capacidade de trabalho dos dirigentes comunistas em geral, tal qual os descreve Zita Seabra, num elogio em que é generosa. Mas sempre me intrigou como, se bem interpretei e se bem me ensinaram a teoria económica marxista do valor trabalho, toda aquela dedicação que os prendia durante dezenas de horas por dia, incluindo fim de semanas, tinha um valor rigorosamente nulo… Defender uma teoria cuja faceta económica classifica o valor do seu trabalho em coisa nenhuma parece ser uma contradição que não os incomodou... Quanto ao livro, e ao seu título (Foi Assim) a nossa opinião é que, se calhar, não terá sido tudo bem assim, mas consideramos que o livro regista um resultado positivo e que a verdade terá reforçado globalmente as suas posições, por muito desagrado que o PCP oficial manifeste.
* Massacre perpetrado em 1940 pelos soviéticos sobre 15.000 oficiais polacos que haviam sido aprisionados no começo da Segunda Guerra Mundial. O massacre foi depois imputado aos alemães, versão que se perpetuou até 1990, quando os soviéticos – sob Gorbatchev – reconheceram finalmente a sua autoria.
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