22 julho 2007

A ÁGUIA BICÉFALA DOS HABSBURGOS

Um dos meus problemas para seguir o debate sobre a necessidade do aprofundamento da unidade europeia é a sua abstracção excessiva. Será defeito meu, mas slogans como o hoje caído em desuso a unidade europeia aprofunda-se enquanto avança ou o argumento da premência para que ela se realize como resposta a uma ordem mundial futura constituída por grandes blocos (Estados Unidos, China, Índia) parecem-me ser justificações demasiado simples.

Não me parece justificação suficiente que se abrace um projecto de tal magnitude apenas por causas reactivas – tem de se fazer como os outros, senão… – nem me parece que o estafado slogan de cima explique mais do que uma doutrina de acção sem qualquer outro propósito ideológico que o sustente. Agora, parece ter sido substituído por um não podemos ficar de fora como se tudo não passasse de uma espécie de estampido numa manada que atropelasse a nossa inércia…
E, continuando com a mesma metáfora, parece que o desconforto tem vindo a aumentar entre os vaqueiros, quando certas manadas, após consulta popular, não têm entrado nos currais que lhes pareciam ser destinados. É que, contrariamente às ovelhas da famosa quinta revolucionária de Animal Farm de George Orwell, estes animais são bastante mais difíceis de ensaiar para que eles modifiquem a sua opinião*: quais são as vantagens e qual é a oportunidade da introdução deste novo tratado?

De facto, as explicações dos analistas políticos que me parecem estar mais ajustadas aos factos que se vão desenrolando na política europeia, baseiam-se em manobras de política real e em estadistas que manobram em função das vantagens que venham a ser adquiridas pelo seu país natal. Fica a sobrar muito pouco para o ideal europeu, a não ser para referências ao professado pelos pais fundadores como Monnet (1888-1979) ou Schuman (1886-1963), e mesmo esses porque já morreram há muito...
Mas, se a opção for a de tomar o assunto pelo seu lado pragmático, torna-se um exercício muito curioso pegar na União Europeia com o seu formato actual de 27 países e tentar compará-la com alguns aspectos do antigo Império Austro-Húngaro de 1918. Diga-se, de antemão, que há diferenças evidentes entre eles: abrangendo quase toda a Europa, a União Europeia actual já tomou dimensões que os Habsburgos nunca sonharam que o seu Império viesse a ter – e se eles eram ambiciosos**…

Para mais, enquanto o velho Império apareceu como uma super-estrutura feudal que se formou, através de uma política matrimonial oportunista e cuidadosamente reflectida, e que foi sendo concretizada muito antes do aparecimento da importância do factor das nacionalidades para a definição das fronteiras da Europa, a actual União Europeia partiu precisamente já dessas fronteiras traçadas pelas nacionalidades e procura agora métodos de as diluir, dando poderes à super-estrutura central.
Mesmo com as direcções políticas centrais lutando com as da periferia para evitar que se desse a desagregação do Império Austro-Húngaro ou, inversamente, lutando contra elas para forçar a agregação da União Europeia, parece que as duas estruturas são capazes de se terem encontrado numa distribuição de poderes entre centro e periferias muito aproximada, embora tendo vindo de direcções políticas diametralmente opostas. E há ainda muitos outros aspectos adicionais que tornam a comparação relevante.

Suponho que a visão do mapa étnico-linguístico do Império Austro-Húngaro em 1914 (acima), pode servir de amostra de como era a sua complexidade interna, e como ele pode servir como uma versão em miniatura do que acontece com a diversidade da União Europeia actual. Mais do que isso, há ainda que recordar como estas representações gráficas têm de ser necessariamente simplificadas, e não podem mostrar na forma devida, as coabitações entre as diversas populações***, hoje empoladas ainda mais pelas imigrações.
Curiosamente, ainda hoje tem renome a burocracia imperial e quão inventiva ela se podia mostrar a arranjar lugares confortáveis aos potenciais líderes nacionalistas e às clientelas deles dependentes, quando eles pudessem pôr em perigo a harmonia vigente dentro do Império. O preço a pagar, por esse sacrifício de recursos para a compra de paz social interna, era um estádio de desenvolvimento económico inferior ao das outras potências europeias. Seria o equivalente da nossa Europa Social moderna.

Outra semelhança engraçada foi a forma como se convencionou, a partir de 1867, reformar a direcção política numa liderança conjunta entre austríacos e húngaros (a lembrar o sempre citado - e agora muito fanado - eixo franco-alemão), com governos distintos em Viena e Budapeste, embora compartilhando o mesmo ministro dos estrangeiros (tal qual Javier Solana?). Como no caso do eixo actual, aquela bicefalia aparente escondia uma superioridade clara dos parceiros germânicos...
Embora o futuro da Europa seja uma incógnita, o exemplo que recolho da História que mais se aproximará do que creio que possa vir a ser o modelo mais plausível de vir a ser aplicado a prazo na União é precisamente este, o do Império Austro-Húngaro... Que, não tendo o carisma histórico doutros grandes Impérios do passado que se costumam evocar quando se fala da construção europeia (como é o caso do Império Romano ou do Império Carolíngio) também teve as suas virtudes****...

E, porque este modelo imperial me parece uma boa concretização do modelo de um certo futuro europeu, que se torna muito mais compreensível que as formulações abstractas que os defensores do aprofundamento dos poderes centrais costumam apresentar em defesa das suas teses, mais se reforçam as minhas reservas quanto à utilidade política da aceleração do ritmo a que elas se venham a processar, através do agendamento forçado da ratificação de tratados de cuja necessidade se desconfia cada vez mais…

Ou, dito de maneira clara, não vejo razões para que haja tanta pressa para que uma espécie de nova águia bicéfala paire sobre o continente…

* Recorde-se que as ovelhas eram os animais encarregados de repetir slogans para abafar o debate. Inicialmente, quando da revolta dos animais, o slogan era quatro patas bom, duas patas mau!; depois, quando os porcos passaram a andar em duas patas e depois de um período de ensaio o slogan mudou para quatro patas bom, duas patas melhor!!!…
** O mote da família era: Austria est imperare orbi universo (AEIOU) - Compete à Áustria governar todo o mundo.
*** No censo de 1910, numa população de 51,4 milhões de habitantes, 12 milhões foram classificados como alemães (na realidade, declararam falar predominantemente o alemão em contactos sociais), 10 milhões como húngaros, 6,4 como checos, 5,0 como polacos, 4,4 servo-croatas, 4,0 ucranianos, 3,2 romenos, 2,0 eslovacos, 1,3 eslovenos e 0,8 italianos. Para complicar, a maioria confessava-se católica (39,4 milhões – 76,6%), mas havia minorias significativas de protestantes e ortodoxos (4,6 e 4,5 milhões), além de 2,3 milhões de judeus espalhados por todo o Império e ainda 700 mil muçulmanos!
**** Nomeadamente, ter servido para manter a Europa Central sob hegemonia alemã durante o século XIX, o que parece ser um dos objectivos prioritários que os alemães querem recuperar no século XXI.

1 comentário:

  1. Exemplo histórico bem adequado às tendências actuais de evolução da UE. Se a advertência final do post não for tida em conta, são bem prováveis grandes complicações no futuro, algumas delas eventualmente próximas das famosas "guerra civis" do século XX, espero que "de baixa intensidade".

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