24 julho 2015

UMA GUERRA QUE RECORDO CONSUMIDA EM CAPÍTULOS DIÁRIOS, COMO UM FOLHETIM

Em 2006, a segurança e defesa de Israel revestia-se de alguns aspectos inéditos na sua História curta mas atribulada: a) Pela primeira vez, tanto as posições de primeiro-ministro (Ehud Olmert, acima ao centro) quanto a de ministro da Defesa (Amir Peretz, acima à direita) eram ocupados por políticos que, tendo cumprido o seu serviço militar como é obrigatório em Israel, não possuíam qualquer prestígio adicional junto das instituições militares; e b) pela primeira vez, o chefe de Estado-Maior do Tsahal (Dan Halutz, acima à esquerda) era oriundo da força aérea (Heyl Ha’Avir), um piloto de caça a quem haviam sido averbadas 3 vitórias em combate durante a Guerra do Yom Kippur de 73 e que chegara ao cargo disposto a incorporar na táctica israelita a doutrina contra subversiva da USAF então adoptada pelos norte-americanos. Derivada também da teoria dos cinco anéis de Warden¹, o modelo ganhara em Israel o imaginativo nome de baptismo Abutres sobre Serpentes, sendo estas últimas organizações como o Hamas ou a Fatah na Palestina e o Hezbollah no Líbano.
Nos finais de Maio de 2006, culminando o que fora até aí uma escalada de incidentes ao longo da fronteira entre Israel e o Líbano, a situação passou para um conflito aberto e assumido entre o Tsahal e o Hezbollah, travado especialmente junto à posição táctica conhecida pelas quintas de Chebaa (mapa abaixo). Foi a oportunidade para que o Tsahal testasse a sua nova doutrina. Com sucesso aparente. Em 48 horas (27 e 28 de Maio) um encadeamento de bombardeamentos de aviação e de artilharia israelitas esmagaram as posições ocupadas pela milícia xiita. Em termos de doutrina, a facção que defendia a nova táctica parecia superiorizar-se à facção rival, que lhe apontava os defeitos que a actuação dos Estados Unidos no Iraque próximo teria evidenciado em anos de resultados indecisos.
Contudo mês e meio depois, a 12 de Julho, tudo recomeçou. Foi o Hezbollah a tomar a iniciativa, quando montou uma emboscada a um destacamento israelita em patrulha ao longo da fronteira, emboscada durante a qual os israelitas perdem oito homens e um carro de combate Merkava. Ao mesmo tempo desencadearam um bombardeamento de rockets desde território libanês sobre centros populacionais israelitas. Mas o pior, em termos de imagem junto da opinião pública israelita, foi a captura de dois soldados – Ehoud Goldwasser e Eldad Regev – um gesto que denuncia a intenção do Hezbollah em provocar deliberadamente o Tsahal. É que duas semanas antes (28 de Junho) fora o Hamas palestiniano a fizer precisamente o mesmo: capturara e sequestrara um outro soldado israelita – Guilad Shalit – na Faixa de Gaza. Aí Israel mostrara o seu ponto fraco ao reagir desproporcionadamente à captura de um dos seus, invadindo militarmente Gaza, capturando no processo 64 dirigentes do Hamas, entre os quais se contavam 8 ministros da Autoridade Palestiniana, para os permutar pelo desaparecido. Com esse comportamento, e estabelecido o padrão, as decisões do alto comando israelita daí por diante pareciam tornar-se refém da sorte de um punhado de soldados aprisionados – por cá, não é raro ver órgãos de informação embarcarem na manipulação semântica israelita e ler que os seus soldados não são capturados, são raptados...
Foi por isso que Hassan Nasrallah, o dirigente do Hezbollah (acima), teria a certeza absoluta que, com aquele rapto, iria provocar a quinta invasão israelita do Líbano² em 28 anos, que começou nessa mesma tarde de 12 de Julho, com a Operação militar a receber o nome de Punição Adequada. Sem ser particularmente numerosa, o Hezbollah constituirá à época a mais eficaz das milícias libanesas, num país que não possuía verdadeiramente um exército nacional, antes várias milícias que correspondem às várias confissões religiosas do país. Com cerca de 2.000 combatentes (uma parte deles veteranos da anterior invasão e ocupação israelita que tivera lugar entre 1996 e 2000), outros 2.000 reservistas e ainda uns 6.000 irregulares, apresentava-se razoavelmente bem equipado quanto a armamento ligeiro, mas estava preciosamente bem equipado quanto ao equipamento mais pesado e também estava rigorosamente bem posicionado quanto à implantação no terreno porque passara os últimos 6 anos a preparar-se para um e só um cenário de guerra: a invasão israelita que estava prestes a repetir-se. Entre o material mais pesado possuía várias centenas de misseis anticarro de última geração destinados a contrariar as colunas blindadas do Tsahal. As suas posições defensivas haviam sido preparadas com enorme antecipação para contrariar os preceitos tácticos do Tsahal já conhecidos das invasões anteriores. Mas o grande recurso do Hezbollah eram os seus paióis repletos com 13.000 rockets de calibres vários (abaixo) para lançar sobre Israel, quais bandarilhas para cravar no dorso de um touro, incitando-o a investir, assegurando-se do controle das intenções do inimigo. Enquanto aqueles rockets continuassem a ser arremessados sobre Israel o Tsahal não poderia suspender as suas operações. Além disso, apesar de ter a reputação de uma milícia irregular, veio-se a descobrir que o Hezbollah possuía o aconselhamento técnico de quadros iranianos.
A Punição Adequada começou por uma conjugação de operações aéreas e navais envolvendo todo o Sul do Líbano numa espécie de carapaça dentro da qual eram interditas as movimentações. O aeroporto de Beirute, uma vintena de pontes e os principais eixos rodoviários foram seleccionados comos alvos pela aviação em complemento a um dispositivo naval que bloqueou o acesso por mar a qualquer ponto do litoral libanês a Sul de Beirute. O Hezbollah porém, não precisou de reabastecimentos logísticos para começar a visar com os seus rockets as cidades do Norte de Israel especialmente o porto de Haifa (a terceira cidade de Israel com cerca de 250.000 habitantes), onde vivia (e vive) uma importante minoria de árabes cristãos (um pouco menos de 14% da população total). Na semana que se seguiria a cidade viria a ser atingida com 93 rockets enquanto se despovoava de quase metade da população. Mas, sem qualquer precisão e causando um total de 11 mortos, os danos que os rockets causavam eram muito mais intangíveis na imagem do suposto poder de Israel. Coisa diferente eram operações como a desencadeada na noite de 14 para 15 de Julho em que um missil C-802 anti-navio atingiu uma das corvetas israelitas – a Hanit (abaixo) – encarregadas de bloquear a costa libanesa, incapacitando-a e causando-lhe 4 mortos entre a tripulação.
Numa espécie de compensação pelas deficiências do seu serviço de informações que não antecipara tal tipo de equipamento de origem chinesa (fornecido via Irão) na posse dos milicianos do Hezbollah, os raids aéreos israelitas registaram uma escalada no dia seguinte, tendo agora como alvo objectivos nos bairros do Sul de Beirute e o seu porto. Os bombardeamentos da aviação israelita tornaram a situação intolerável no Sul do Líbano de onde, por instigação dos israelitas, a população começou a fugir, num êxodo de mais de meio milhão de pessoas. Mas, por outro lado, ao conseguir continuar a lançar uma média diária de várias dezenas de rockets sobre as povoações do Norte de Israel, o Hezbollah conseguiu criar condições de instabilidade simétricas que provocaram o mesmo género de deslocação das populações israelitas.

Após uma semana de raids aéreos, a aviação israelita havia atingido todos os objectivos pré-determinados – os quartéis-generais conhecidos do Hezbollah assim como as suas rampas de lançamento dos rockets de maior alcance, a central eléctrica que servia o sul do Líbano, as pontes da rede rodoviária da região, o trânsito de viaturas pesadas estava interdito – sem que esse sucesso se visse reflectido na forma como as opiniões públicas em Israel e no Mundo apreciavam a situação: bastavam as filmagens da rotina diária de uma qualquer equipa de reportagem televisiva para ali destacada, mostrando a queda de um punhado de katyusha de 122 mm sobre uma qualquer povoação da Galileia (acima) para subverterem toda a cuidada planificação do Estado-Maior israelita. É nessas circunstâncias que o Estado-Maior decide proceder a uma inflexão, consagrada na mudança do nome da Operação, que deixa de ser a Punição Adequada para se tornar na Mudança de Direcção. A nova direcção é produzir um encadeado de raids terrestres em território libanês dirigidos sobre objectivos de valor simbólico para o inimigo. 
 
Era o caso exemplar da vila de Bint Jbeil. Fora ali que, em 2000 e após a retirada israelita do Sul do Líbano depois de 18 anos de ocupação, o xeque Hassan Nasrallah pronunciara o seu discurso de vitória. A enumeração das unidades israelitas que acabaram envolvidas na Mudança de Direcção veio dar a impressão de se terem mobilizado um conjunto de meios muito respeitável: cinco brigadas blindadas (7ª, 14ª, 188ª, 401ª e 500ª), duas brigadas de pára-quedistas (35ª e 226ª) e ainda quatro brigadas de infantaria mecanizada (Alexandroni, Givati, Golani e Nahal). Teoricamente estar-se-ia a falar de 45.000 efectivos, mas a escala dos combates, embora tenazes, foi substancialmente inferior: a ofensiva de 26 de Julho contra a vila de Bint Jbeil envolveu duas brigadas, a 35ª e a Golani e saldou-se por duras perdas dos dois lados mas a contagem dessas perdas duras (9 mortos e 25 feridos graves) do lado israelita dá hoje uma outra ideia da escala dos combates e indicia a incapacidade de Israel em suportar baixas verdadeiramente pesadas tendo em atenção os parcos objectivos do conflito onde se engajara. À comunicação social, o general Dan Halutz (acima) anunciava que o Hezbollah estava em vias de sofrer enormes danos estratégicos mas sem precisar em que consistiriam. Pior do que isso, do ponto de vista de Israel mas também das formações políticas rivais do Hezbollah no Líbano, a resistência demonstrada no terreno pelo Hezbollah – entre 27 e 29 de Julho falhou uma nova ofensiva contra Bint Jbeil que custou 10 mortos e 50 feridos graves aos israelitas – estavam a consolidar um prestígio daquela organização que se iria obrigatoriamente reflectir na sua capacidade negocial à mesa das negociações. A pressão em Israel (mas não só...) para que se chegasse rapidamente a um cessar-fogo era grande.
A 31 de Julho o gabinete israelita, completamente ultrapassado pelos acontecimentos e sempre receoso que o alargamento do envolvimento militar no Líbano o reconduzisse à situação política insolúvel que se vivera com a ocupação do Sul do país entre 1982 e 2000, lá acabou por aceitar, a contragosto e renitente, o princípio do alargamento das operações militares, sujeitas a que essas operações fossem suficientemente limitadas para, dando a imagem inequívoca de derrota táctica do Hezbollah não se prestassem aos equívocos de uma reedição da Operação Paz para a Galileia de 1982 – que desde há mais de trinta anos não trouxera paz para lado algum. Um dos meios privilegiados foi a realização daquele género de operações especiais espectaculares, capazes de encher os noticiários, do tipo Entebbe³. Só que, desta vez, essas operações tiveram um êxito mitigado.
Na noite de 1 para 2 de Agosto um comando, composto por equipas dos Sayeret Matkal e Chedlag, atacou com um forte apoio de meios aéreos (caças F-16, helicópteros Apache e CH-53) o hospital de Dar al-Hikma, uma infra-estrutura financiada pelos iranianos, localizada na região de Baalbek no vale de Bekaa, onde se supunha que estariam escondidos alguns dos mais altos dirigentes do Hezbollah. Como em Entebbe³, os comandos também se aproximaram do objectivo disfarçados com equipamento idêntico ao usado pelos libaneses, mas o efeito de surpresa alcançado não teve nada do lendário efeito relâmpago no Uganda: os combates demoraram 4 horas e os israelitas acabaram por não encontrar no local os quadros da organização xiita que pretendiam usar posteriormente como moeda de troca contra os prisioneiros israelitas. De 5 para 6 de Agosto, houve uma outra operação de comandos (navais) daquele mesmo género, mas com melhores resultados. O alvo dessa vez foram as rampas de lançamento dos misseis Fajr-5 (de concepção iraniana e um alcance alargado de 60 km) que estavam instaladas/camufladas num prédio do centro da cidade de Tiro. A intervenção estava terminada duas horas depois: as rampas e os misseis haviam sido destruídos e o interrogatório dos prisioneiros permitira localizar onde se localizavam os outros pontos de lançamento naquela mesma região de Tiro que, dali por um quarto de hora e beneficiando ainda do efeito de surpresa estavam a sofrer os efeitos dos raids nocturnos da aviação.
Mas este grande sucesso militar não conseguiu esconder a percepção que os intervenientes tinham das consequências da evolução das operações: o tempo estava do lado dos libaneses. Tanto era assim que, nesse mesmo dia 6 de Agosto de 2006 era o governo libanês que rejeitava endossar um projecto franco-norte-americano de resolução a apresentar no Conselho de Segurança da ONU. Por eles, a redacção era demasiado favorável aos interesses israelitas... A vila simbólica de Bint Jbeil ainda não caíra nas mãos do Tsahal – nem nunca viria a cair... – e continuavam a cair rockets sobre o Norte de Israel. O reforço crescente dos efectivos postos em linha pelo Tsahal tornava a posição do Hezbollah cada vez mais precária mas é nítido que são os israelitas que têm mais pressa em que se firme um acordo para o cessar das operações. Em 7 de Agosto os xiitas libaneses mostravam que ainda tinham ideias em carteira quanto tentaram começar a usar drones para continuar a bombardear Israel: começaram por usar um Ababil de concepção iraniana (abaixo) que foi destruído por um F-16 israelita ainda sobre território libanês.
Desde os princípios de Agosto que, nascida não se sabe de onde, surge uma necessidade em crescendo da existência de uma força de interposição robusta que separe os combatentes. Cá em Portugal a ideia apareceu expressa de forma previsível por opinion makers como José Pacheco Pereira. Houve um director de jornal (José Manuel Fernandes) que, convidado por Israel para cobrir o conflito a expensas de um dos contendores, se excedeu na forma como se engajou parcial pelo lado que financia a sua estadia, arrastando atrás de si a publicação que dirige (Público). No cume do disparate, esse jornal publica a 11 de Agosto um título de primeira página anunciando que França e EUA chegam a acordo sobre cessar-fogo como se os intervenientes directos não fossem mais do que marionetas de interesses alheios. É que não o eram e, se o fossem, não seriam esses propriamente (França e Estados Unidos) os dois actores principais em conflito. E desmentindo na prática o Público, a resolução 1701 do Conselho de Segurança da ONU que pôs fim ao conflito só veio a ser votada dali por três dias, a 14 de Agosto, o que, no mínimo, quer dizer que era necessário que mais interlocutores chegassem a acordo...
Para deslustre da argumentação de quem acompanhou o conflito de uma forma facciosa pró-israelita, o balanço final era nitidamente desfavorável a Israel. Não se haviam alcançado qualquer dos objectivos assumidos publicamente: os dois soldados israelitas capturados não foram libertados, as milícias do Hezbollah continuavam presentes no Sul do Líbano, bem longe de terem sido erradicadas conforme se prometera, pelo contrário, o estatuto político da organização e o standing do seu líder, o xeque Nasrallah saíra até reforçado. O único ponto positivo para Israel era o reforço da FINUL, a designação das forças de interposição instaladas na região, vigiando os beligerantes, denunciando as iniciativas das milícias xiitas. No mês seguinte uma Comissão de Inquérito era criada em Israel para analisar o que correra mal. As conclusões dessa Comissão, designada por Winograd (do nome do seu presidente), foram particularmente severas para os dirigentes políticos e militares israelitas numa desautorização retroactiva de muito do que fora doutamente publicado e opinado durante o conflito. Na realidade, constata-se que quando se revê o dia-a-dia noticioso de um conflito como aquele (veja-se este resumo da BBC News ao longo de três semanas: 1, 2, 3), é notório como aquilo que vemos enquanto decorre se assemelha a um encadeado de notícias, como árvores, sem perspectiva de floresta. Que nunca esqueçamos esta lição quando se acompanha acontecimentos destas características - quase tudo o que de importante aconteceu não chegou aos jornais na época.

Este é um texto com tema escolhido, especialmente dedicado ao meu sogro – José Alberto Loureiro dos Santos – com os meus votos para que recupere e que o venha a apreciar como costuma fazer.
¹ John A. Warden III, coronel da USAF.
² 1978, 1982, 1993, 1996, 2006.
³ Aeroporto da capital do Uganda onde, em 1976, um comando do Tsahal efectuou uma operação de resgate de mais de 100 reféns de um sequestro aéreo.

1 comentário:

  1. Obrigado pelo relato deste conflito!
    Não sei por que razão (talvez a idade...) devo ter "desligado" destas guerras depois da campanha do Sinai... e da "guerra dos seis dias".

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