Encontrei outro dia este Top das melhores composições de música pop anglo-saxónica do já longínquo ano de 1966. Foi elaborado a partir das votações dos nove colaboradores de então daquele que viria a ser um celebrado programa radiofónico chamado Em Órbita. Vivendo-se em plena época da beatlemania não surpreende que no primeiro lugar tivesse ficado uma composição sua, Eleanor Rigby, escolha que foi devidamente justificada aos microfones do programa: «Um conjunto quase perfeito de melodia, vocalização, instrumentação. Um tema actual, sentido universalmente, dito em versos lapidares, quase cruéis, fazem dela uma gravação válida, uma afirmação e uma opinião.»
Reforçando a impressão de intelectualidade vanguardista sugerida pelo teor da explicação supra, regista-se que não aparece mais nenhuma canção dos The Beatles nas restantes 14 canções do Top e isso apesar da banda ter editado naquele ano o álbum Revolver. Significativamente, o painel elegeu para o segundo lugar Dead End Street dos The Kinks, uma música também com predicados, quiçá outra mensagem marcante, válida, afirmativa e opinativa. Azar o dos jurados de 66 que as gerações que lhes sucederam não lhe terão prestado – à mensagem dos Kinks – a atenção que eles antecipavam e que Dead End Street esteja hoje - quando comparada com as músicas que a precedem e sucedem - praticamente esquecida.
Mas o mais colossal erro de previsão do sofisticado júri ficará para o fim, para aquilo que foi então qualificado como apior gravação do ano, assim descrita: «Uma melodia vulgar, a que se acrescentou uma letra de péssimo gosto, de intenções duvidosas, poeticamente mal construída, feita para agradar a espíritos anestesiados.» As opiniões a respeito de música, sobretudo se são colectivas, já então eram absolutamente livres (apesar do Salazar), mas isto de andar a fazer profecias sempre foi mesmo muito complicado...
Ainda a propósito de misseis e numa certa continuidade do poste anterior, permitam-me o lamento de, por reconhecer algum armamento, não conseguir embarcar por vezes em certas ilusões cinematográficas. É o caso da cena acima, que foi retirada do filme Atrás das Linhas do Inimigo de 2001, onde um F-18 Superhornet norte-americano realiza um magistral e emotivo bailado evadindo-se a uma bataria de misseis terra-ar de origem nitidamente soviética lançados para o derrubar, até ele ser atingido precisamente pelo último missil, passados alguns minutos de alucinante perseguição e angustiante expectativa. O que é notável é que praticamente tudo está errado naquela cena. Em primeiro lugar porque o avião, à baixa altitude a que o vemos voar, nunca conseguiria bater os misseis em velocidade. Estes últimos são reconhecíveis como tratando-se de 9M37, foram lançados de uma plataforma Strela-10 (conhecida na NATO sob a designação SA-13). Atingem quase imediatamente uma velocidade de Mach 1,6. Ora o F-18 pode atingir essa e até velocidades superiores (até ao máximo de Mach 1,8) mas só o consegue fazer a altitudes muito superiores (40.000 pés – 12 km) onde o ar é muito mais rarefeito. Por isso o avião teria sido rapidamente alcançado pelos mísseis. Mas, em segundo lugar e admitindo-se que não o tendo sido, também não precisaria de se cansar tanto a evadi-los, pois a autonomia de um 9M37 é curtíssima: 5 km de distância, 3.500 metros de altitude, são cerca de 10 a 15 segundos em voo, nada da perseguição assanhada que se vê no filme. Em terceiro lugar, pela configuração das asas, é impossível que aqueles misseis realizassem todas aquelas verdadeiras acrobacias aéreas, verdadeiros contorcionismos a desafiar as leis da aerodinâmica. Para remate e em quarto lugar, o piloto, para adquirir mais manobrabilidade, larga os depósitos externos de combustível do caça e isso é impossível de fazer em voo num F-18 - ao contrário de outros aparelhos, só é possível removê-los no solo. Antes de toda esta recente polémica do Benfica para o Sporting atribuía-se a Jorge Jesus uma frase verdadeiramente interessante, treinava ele o Sporting de Braga e dizia ele que o Sporting de Braga só podia ser campeão (de futebol) na play-station. Pois bem, quando vejo filmes de guerra, e eles estão assim retocados para propiciarem mais emoção, não me conseguem transmitir a essencial ilusão do cinema, tornam-se em algo semelhante ao que Jesus se referia, a um qualquer jogo virtual saído de uma play station.
O Air-2 Genie foi um míssil ar-ar norte-americano concebido na década de 1950, notável por possuir uma ogiva nuclear de pequena potência: a capacidade explosiva equivalente a 1.700 toneladas (1,7 kton.) de TNT, o que representava 10 a 15% da potência da bomba nuclear que fora lançada em 1945 sobre Hiroxima. Mas a ogiva W-25 fora concebida com uma finalidade totalmente distinta da dessa sua longínqua antecessora. Tinha uma função táctica, a de, na eventualidade de uma Terceira Guerra Mundial e de um ataque nuclear da União Soviética, interceptar os bombardeiros soviéticos antes de eles atingirem os Estados Unidos. E, mais do que uma arma de precisão, era uma arma concebida para interditar toda uma zona aérea, não apenas por causa da explosão em altitude, como sobretudo por causa do efeito associado da pulsão electromagnética destruir os sistemas eléctricos e electrónicos do bombardeiro intruso. Era para evitar que o avião que lançava o Air-2 (que tinha um alcance inferior a 10 km) viesse a ser vítima da própria arma que transportava, que havia uma manobra de ataque muito específica para o seu emprego, conforme se pode apreciar na figura abaixo.
Ironias em que a Guerra-Fria foi fértil, o ano em que o Air-2 Genie foi considerado operacional (1957) foi o mesmo ano em que a União Soviética mostrou passar a dispor de misseis balísticos intercontinentais (ICBM) capazes de alcançar os Estados Unidos, quando do lançamento do primeiro satélite artificial (Sputnik-1). Acabado de entrar ao serviço, o Air-2 Genie ir-se-ia tornar rapidamente obsoleto por não poder desactivar um bombardeamento de ICBM soviéticos que, à reentrada na atmosfera em direcção aos alvos, estariam a percorrer uma trajectória balística, independente de sistemas electrónicos de orientação. Para isso seria precisa toda uma outra tecnologia, ainda hoje não aprimorada na Iniciativa de Defesa Estratégica. Mas o retoque desta história é o único ensaio do míssil que teve lugar em 19 de Julho de 1957. Sinal dos tempos, ainda se tentava cultivar uma imagem de convívio com o nuclear. Para isso, cinco oficiais da USAF em farda de verão mais a equipa de reportagem foram filmados na vertical do local previsto para a explosão, a 18.000 pés acima deles. A punch-line era explicar que qualquer deles seria exposto a 1/100 da radiação que se recebe com uma vulgar radiografia. Mas a atitude dos figurantes é de uma falsa descontracção e a linguagem corporal do grupo acaba por não nos enganar: quando da explosão, há dois oficiais que instintivamente se agacham, outros dois protegem os olhos com a mão em pala, só um deles - o que trouxe os óculos escuros... - olha para cima, cumprindo o script.
Depois de ter consagrado durante vários séculos como tema de representação de pinturas ou de outras formas de expressão (acima, uma foto clássica), no século XXI a natureza-morta parece ter-se popularizado ainda mais, embora metamorfoseando-se no processo em algo que poderemos rebaptizar por natureza-comestível. Esta natureza moderna captada pelos smartphones não só morreu como se prepara para ser devorada, num gesto ora banalizado por alguns comensais de restaurante que não prescindem de fotografar a sua pièce de résistance para posterior afixação no facebook. É a arte, estúpido!
A minha maior dificuldade vai para o título a dar a este meu desabafo: porra nenhuma, ministro do bluff, ou qualquer outra forma de exprimir o meu cansaço para com discursos repletos de palavras e locuções que, parecendo soar bem, não têm qualquer significado quando escrutinados. Como um tal de programa damobilidade sustentávelpara a administração pública 2015-2020 que ouvi esta manhã a ser impingido aos microfones da TSF pelo ministro Moreira da Silva e que, pela sua vacuidade, até merece a transcrição do trecho abaixo que se pode também ouvir aqui:
Moreira da Silva: - (...) Ninguém está a falar de boleias de funcionários públicos em carros do Estado nas deslocações para os locais de trabalho, isso é um disparate, claro que não! O que está em causa é que, a partir deste programa, o Estado, em vez de ter um determinado veículo atribuído a um determinado serviço ou a um determinado departamento, vai gerir a sua frota de uma forma partilhada como já acontece com várias empresas e, portanto, vai ter uma gestão partilhada dos veículos de modo a que se possam ter uma gestão mais eficiente desses veículos e não uma lógica rígida de atribuição de um determinado veículo a um determinado serviço. Jornalista da TSF: - Mas o que é que significa exactamente essa partilha da frota? Moreira da Silva: - Poder partilhar a frota. Em vez de ter os carros que estão parados durante uma boa parte do dia, teremos, portanto, uma gestão mais partilhada, numa pool de veículos. Em segundo lugar, uma redução das utilizações. E em terceiro lugar, uma substituição de veículos muito antigos (...)
Repare-se como a resposta do ministro nada esclarece a pergunta do jornalista. Será que com a partilha da frota, quando o estafeta lá do seu ministério, quanto tiver a mota a arranjar, pode levar o BMW série 7 do ministro para ir fazer um recadinhoà São Caetano à Lapa? Seria a explicação com recurso a estas situações concretas que o auditório decerto compreenderia. Porque de programas etéreos, pretensamente visionários até ao ano 2020, da sua avaliação já estamos todos vacinados: quando se lá chega (a 2020) ou está tudo esquecido ou todos os fracassos já não têm responsáveis.
Nota: Tanto no francês original quanto em inglês, poseur (do título e da fotografia acima) refere-se a uma pessoa que assume uma atitude afectada, artificial e/ou pretensiosa.
Quase que casualmente, a caminho dos finais de
Julho, de entrada para as férias, materializa-se uma notícia de que fontes
próximas de Marcelo Rebelo de Sousa lhe atribuem a intenção de fazer uma
campanha pouco dispendiosa: low-cost. A expressão (low-cost) consagra-se como
uma espécie de impressão digital da autoria da notícia, repetida no jornali,
na revista Sábado, nas Notícias ao Minuto, no Diário Digital... Descodificando,
isto só pode querer dizer que Marcelo não dispõe de grandes apoios financeiros que lhe
financiem a campanha. Não faz mal.
Nas memoráveis eleições para a Câmara de Lisboa
de 1989, onde Marcelo se atirou ao Tejo, conduziu um táxi (abaixo) e acartou
lixo, a justificação dada depois por si para tal comportamento era a enorme diferença
de notoriedade entre a sua pessoa e Jorge Sampaio. Actualmente, com um popular programa
semanal da televisão, o problema da sua notoriedade em comparação com a concorrência
não se porá mas, porque creio ser genético, anseio por ouvir a marcelisse que
justificará uma ou outra pantomina com que Marcelo nos brindará (seguramente) durante a
campanha.
A novidade não é existir uma parte dos portugueses que concebem a sua relação com o poder de uma forma muita parecida como uma certa comunidade de devotos acredita nas capacidades curativas do celebrado Dr. Sousa Martins (1843-1897). Isso é coisa que já existe há mais de cem anos, pode dizer-se figurativamente que é fenómeno sociológico que virá de sempre. A novidade estará a ser o nosso primeiro-ministro realizando uma inflexão de discurso nos últimos meses, depois de nem sequer sangue, suor ou lágrimas nos prometer, para um género de quem concede graças como as do santificado doutor... Resta escolher o local onde depositar as placas de mármore agradecendo-lhe, por exemplo, a hipotética (que ainda condicional) devolução do IRS.
É corriqueira no português a expressão de que eu percebo tanto disto quanto de lagares de azeite por sinónimo de actividade (que nos é) impenetrável. Pois bem, fonte bem informada, no caso o director de marketing da Oliveira da Serra, Otto Teixeira da Cruz (com dois tês e tudo) e como se pode ler na notícia acima, explicou ao Público e por, arrastamento, ao Tribuna do Alentejo, aqueles que serão os mistérios desconhecidos da operação dos ditos lagares.
Visitei recentemente o Centro Belga de Banda Desenhada em Bruxelas. Gostei. Como imagino que todos os apreciadores da nona arte gostam. Mas saí de lá (para além de alguns álbuns – de Bob de Moor e Roba, para os que gostariam de fazer a pergunta...) com algumas estranhezas inesperadas, acerca de quem lá está e eu não percebo porquê e de quem não está e eu não percebo porquê também: sendo um centro belga porquê o destaque dado a Astérix dado logo à entrada (foto acima)? Um piscar de olhos à popularidade? É que tanto o herói quanto os seus dois autores são franceses. Em contraste é chocante o destaque dado a Hergé e a Tintin quando em comparação com Blake & Mortimer e Edgar Pierre Jacobs. As referências que se vêm a estes últimos dois heróis da BD incidem aliás sobre as versões póstumas. Mas a minha maior crítica vai para uma omissão, mesmo tendo encontrado outras e muitas delas compreensíveis porque nem todas as dezenas de desenhadores e argumentistas belgas conhecidos caberiam naquele espaço. Mas não concebo qualquer explicação para que não tenha encontrado nenhuma referência a Greg (Michel Regnier), desenhador de duas séries (Achille Talon e Zig e Puce), argumentista de uma meia-dúzia de outras, editor da revista Tintin entre 1965 e 1974.
Ao contrário do que possa ser a imagem predominante nos dias que correm, nem toda a colaboração que a Alemanha e Adolf Hitler obtiveram durante a Segunda Guerra Mundial resultou de coacção. Houve países onde se apostou deliberadamente no sucesso do Eixo. Da esquerda para a direita, Ion Antonescu (1882-1946) da Roménia, Miklós Horthy (1868-1957) da Hungria, Carl Gustaf Mannerheim (1867-1951) da Finlândia e Ante Pavelic (1889-1959) da Croácia. Não é por coincidência que todos aparecem uniformizados como também não será por coincidência que, à excepção de Antonescu, que foi fuzilado no seu país natal em 1946, todos os outros morreram no exílio em países que haviam permanecido neutrais durante a Guerra: Horthy em Portugal, Mannerheim na Suíça e Pavelic em Espanha.
De certa forma, é pena que oheyday da expressão em cima da mesa já tenha passado. Aqui há coisa de um a dois anos, os temas (uma expressão que, pelo contrário, não passou de moda...) andavam todos por cima das mesas, irritando-me pela sua repetição sistemática, muitas vezes sem contexto, numa imposição jornalístico-literária-política, sem... caírem ao chão. E é pena porque nunca nessa época propícia me deparei com esta magnífica fotografia do espanhol Luis Sanchis para a publicar, pretexto para ridicularizar a expressão, como agora o faço.
Em 2006, a segurança e defesa de Israel revestia-se de alguns aspectos inéditos na sua História curta mas atribulada: a) Pela primeira vez, tanto as posições de primeiro-ministro (Ehud Olmert, acima ao centro) quanto a de ministro da Defesa (Amir Peretz, acima à direita) eram ocupados por políticos que, tendo cumprido o seu serviço militar como é obrigatório em Israel, não possuíam qualquer prestígio adicional junto das instituições militares; e b) pela primeira vez, o chefe de Estado-Maior do Tsahal (Dan Halutz, acima à esquerda) era oriundo da força aérea (Heyl Ha’Avir), um piloto de caça a quem haviam sido averbadas 3 vitórias em combate durante a Guerra do Yom Kippur de 73 e que chegara ao cargo disposto a incorporar na táctica israelita a doutrina contra subversiva da USAF então adoptada pelos norte-americanos. Derivada também da teoria dos cinco anéis de Warden¹, o modelo ganhara em Israel o imaginativo nome de baptismo Abutres sobre Serpentes, sendo estas últimas organizações como o Hamas ou a Fatah na Palestina e o Hezbollah no Líbano.
Nos finais de Maio de 2006, culminando o que fora até aí uma escalada de incidentes ao longo da fronteira entre Israel e o Líbano, a situação passou para um conflito aberto e assumido entre o Tsahal e o Hezbollah, travado especialmente junto à posição táctica conhecida pelas quintas de Chebaa (mapa abaixo). Foi a oportunidade para que o Tsahal testasse a sua nova doutrina. Com sucesso aparente. Em 48 horas (27 e 28 de Maio) um encadeamento de bombardeamentos de aviação e de artilharia israelitas esmagaram as posições ocupadas pela milícia xiita. Em termos de doutrina, a facção que defendia a nova táctica parecia superiorizar-se à facção rival, que lhe apontava os defeitos que a actuação dos Estados Unidos no Iraque próximo teria evidenciado em anos de resultados indecisos.
Contudo mês e meio depois, a 12 de Julho, tudo recomeçou. Foi o Hezbollah a tomar a iniciativa, quando montou uma emboscada a um destacamento israelita em patrulha ao longo da fronteira, emboscada durante a qual os israelitas perdem oito homens e um carro de combate Merkava. Ao mesmo tempo desencadearam um bombardeamento de rockets desde território libanês sobre centros populacionais israelitas. Mas o pior, em termos de imagem junto da opinião pública israelita, foi a captura de dois soldados – Ehoud Goldwasser e Eldad Regev – um gesto que denuncia a intenção do Hezbollah em provocar deliberadamente o Tsahal. É que duas semanas antes (28 de Junho) fora o Hamas palestiniano a fizer precisamente o mesmo: capturara e sequestrara um outro soldado israelita – Guilad Shalit – na Faixa de Gaza. Aí Israel mostrara o seu ponto fraco ao reagir desproporcionadamente à captura de um dos seus, invadindo militarmente Gaza, capturando no processo 64 dirigentes do Hamas, entre os quais se contavam 8 ministros da Autoridade Palestiniana, para os permutar pelo desaparecido. Com esse comportamento, e estabelecido o padrão, as decisões do alto comando israelita daí por diante pareciam tornar-se refém da sorte de um punhado de soldados aprisionados – por cá, não é raro ver órgãos de informação embarcarem na manipulação semântica israelita e ler que os seus soldados não são capturados, são raptados...
Foi por isso que Hassan Nasrallah, o dirigente do Hezbollah (acima), teria a certeza absoluta que, com aquele rapto, iria provocar a quinta invasão israelita do Líbano² em 28 anos, que começou nessa mesma tarde de 12 de Julho, com a Operação militar a receber o nome de Punição Adequada. Sem ser particularmente numerosa, o Hezbollah constituirá à época a mais eficaz das milícias libanesas, num país que não possuía verdadeiramente um exército nacional, antes várias milícias que correspondem às várias confissões religiosas do país. Com cerca de 2.000 combatentes (uma parte deles veteranos da anterior invasão e ocupação israelita que tivera lugar entre 1996 e 2000), outros 2.000 reservistas e ainda uns 6.000 irregulares, apresentava-se razoavelmente bem equipado quanto a armamento ligeiro, mas estava preciosamente bem equipado quanto ao equipamento mais pesado e também estava rigorosamente bem posicionado quanto à implantação no terreno porque passara os últimos 6 anos a preparar-se para um e só um cenário de guerra: a invasão israelita que estava prestes a repetir-se. Entre o material mais pesado possuía várias centenas de misseis anticarro de última geração destinados a contrariar as colunas blindadas do Tsahal. As suas posições defensivas haviam sido preparadas com enorme antecipação para contrariar os preceitos tácticos do Tsahal já conhecidos das invasões anteriores. Mas o grande recurso do Hezbollah eram os seus paióis repletos com 13.000 rockets de calibres vários (abaixo) para lançar sobre Israel, quais bandarilhas para cravar no dorso de um touro, incitando-o a investir, assegurando-se do controle das intenções do inimigo. Enquanto aqueles rockets continuassem a ser arremessados sobre Israel o Tsahal não poderia suspender as suas operações. Além disso, apesar de ter a reputação de uma milícia irregular, veio-se a descobrir que o Hezbollah possuía o aconselhamento técnico de quadros iranianos.
A Punição Adequada começou por uma conjugação de operações aéreas e navais envolvendo todo o Sul do Líbano numa espécie de carapaça dentro da qual eram interditas as movimentações. O aeroporto de Beirute, uma vintena de pontes e os principais eixos rodoviários foram seleccionados comos alvos pela aviação em complemento a um dispositivo naval que bloqueou o acesso por mar a qualquer ponto do litoral libanês a Sul de Beirute. O Hezbollah porém, não precisou de reabastecimentos logísticos para começar a visar com os seus rockets as cidades do Norte de Israel especialmente o porto de Haifa (a terceira cidade de Israel com cerca de 250.000 habitantes), onde vivia (e vive) uma importante minoria de árabes cristãos (um pouco menos de 14% da população total). Na semana que se seguiria a cidade viria a ser atingida com 93 rockets enquanto se despovoava de quase metade da população. Mas, sem qualquer precisão e causando um total de 11 mortos, os danos que os rockets causavam eram muito mais intangíveis na imagem do suposto poder de Israel. Coisa diferente eram operações como a desencadeada na noite de 14 para 15 de Julho em que um missil C-802 anti-navio atingiu uma das corvetas israelitas – a Hanit(abaixo) – encarregadas de bloquear a costa libanesa, incapacitando-a e causando-lhe 4 mortos entre a tripulação.
Numa espécie de compensação pelas deficiências do seu serviço de informações que não antecipara tal tipo de equipamento de origem chinesa (fornecido via Irão) na posse dos milicianos do Hezbollah, os raids aéreos israelitas registaram uma escalada no dia seguinte, tendo agora como alvo objectivos nos bairros do Sul de Beirute e o seu porto. Os bombardeamentos da aviação israelita tornaram a situação intolerável no Sul do Líbano de onde, por instigação dos israelitas, a população começou a fugir, num êxodo de mais de meio milhão de pessoas. Mas, por outro lado, ao conseguir continuar a lançar uma média diária de várias dezenas de rockets sobre as povoações do Norte de Israel, o Hezbollah conseguiu criar condições de instabilidade simétricas que provocaram o mesmo género de deslocação das populações israelitas.
Após uma semana de raids aéreos, a aviação israelita havia atingido todos os objectivos pré-determinados – os quartéis-generais conhecidos do Hezbollah assim como as suas rampas de lançamento dos rockets de maior alcance, a central eléctrica que servia o sul do Líbano, as pontes da rede rodoviária da região, o trânsito de viaturas pesadas estava interdito – sem que esse sucesso se visse reflectido na forma como as opiniões públicas em Israel e no Mundo apreciavam a situação: bastavam as filmagens da rotina diária de uma qualquer equipa de reportagem televisiva para ali destacada, mostrando a queda de um punhado de katyusha de 122 mm sobre uma qualquer povoação da Galileia (acima) para subverterem toda a cuidada planificação do Estado-Maior israelita. É nessas circunstâncias que o Estado-Maior decide proceder a uma inflexão, consagrada na mudança do nome da Operação, que deixa de ser a Punição Adequada para se tornar na Mudança de Direcção. A nova direcção é produzir um encadeado de raids terrestres em território libanês dirigidos sobre objectivos de valor simbólico para o inimigo.
Era o caso exemplar da vila de Bint Jbeil. Fora ali que, em 2000 e após a retirada israelita do Sul do Líbano depois de 18 anos de ocupação, o xeque Hassan Nasrallah pronunciara o seu discurso de vitória. A enumeração das unidades israelitas que acabaram envolvidas na Mudança de Direcção veio dar a impressão de se terem mobilizado um conjunto de meios muito respeitável: cinco brigadas blindadas (7ª, 14ª, 188ª, 401ª e 500ª), duas brigadas de pára-quedistas (35ª e 226ª) e ainda quatro brigadas de infantaria mecanizada (Alexandroni, Givati, Golani e Nahal). Teoricamente estar-se-ia a falar de 45.000 efectivos, mas a escala dos combates, embora tenazes, foi substancialmente inferior: a ofensiva de 26 de Julho contra a vila de Bint Jbeil envolveu duas brigadas, a 35ª e a Golani e saldou-se por duras perdas dos dois lados mas a contagem dessas perdas duras (9 mortos e 25 feridos graves) do lado israelita dá hoje uma outra ideia da escala dos combates e indicia a incapacidade de Israel em suportar baixas verdadeiramente pesadas tendo em atenção os parcos objectivos do conflito onde se engajara. À comunicação social, o general Dan Halutz (acima) anunciava que o Hezbollah estava em vias de sofrer enormes danos estratégicos mas sem precisar em que consistiriam. Pior do que isso, do ponto de vista de Israel mas também das formações políticas rivais do Hezbollah no Líbano, a resistência demonstrada no terreno pelo Hezbollah – entre 27 e 29 de Julho falhou uma nova ofensiva contra Bint Jbeil que custou 10 mortos e 50 feridos graves aos israelitas – estavam a consolidar um prestígio daquela organização que se iria obrigatoriamente reflectir na sua capacidade negocial à mesa das negociações. A pressão em Israel (mas não só...) para que se chegasse rapidamente a um cessar-fogo era grande.
A 31 de Julho o gabinete israelita, completamente ultrapassado pelos acontecimentos e sempre receoso que o alargamento do envolvimento militar no Líbano o reconduzisse à situação política insolúvel que se vivera com a ocupação do Sul do país entre 1982 e 2000, lá acabou por aceitar, a contragosto e renitente, o princípio do alargamento das operações militares, sujeitas a que essas operações fossem suficientemente limitadas para, dando a imagem inequívoca de derrota táctica do Hezbollah não se prestassem aos equívocos de uma reedição da Operação Paz para a Galileia de 1982 – que desde há mais de trinta anos não trouxera paz para lado algum. Um dos meios privilegiados foi a realização daquele género de operações especiais espectaculares, capazes de encher os noticiários, do tipo Entebbe³. Só que, desta vez, essas operações tiveram um êxito mitigado.
Na noite de 1 para 2 de Agosto um comando, composto por equipas dos Sayeret Matkal e Chedlag, atacou com um forte apoio de meios aéreos (caças F-16, helicópteros Apache e CH-53) o hospital de Dar al-Hikma, uma infra-estrutura financiada pelos iranianos, localizada na região de Baalbek no vale de Bekaa, onde se supunha que estariam escondidos alguns dos mais altos dirigentes do Hezbollah. Como em Entebbe³, os comandos também se aproximaram do objectivo disfarçados com equipamento idêntico ao usado pelos libaneses, mas o efeito de surpresa alcançado não teve nada do lendário efeito relâmpago no Uganda: os combates demoraram 4 horas e os israelitas acabaram por não encontrar no local os quadros da organização xiita que pretendiam usar posteriormente como moeda de troca contra os prisioneiros israelitas. De 5 para 6 de Agosto, houve uma outra operação de comandos (navais) daquele mesmo género, mas com melhores resultados. O alvo dessa vez foram as rampas de lançamento dos misseis Fajr-5 (de concepção iraniana e um alcance alargado de 60 km) que estavam instaladas/camufladas num prédio do centro da cidade de Tiro. A intervenção estava terminada duas horas depois: as rampas e os misseis haviam sido destruídos e o interrogatório dos prisioneiros permitira localizar onde se localizavam os outros pontos de lançamento naquela mesma região de Tiro que, dali por um quarto de hora e beneficiando ainda do efeito de surpresa estavam a sofrer os efeitos dos raids nocturnos da aviação.
Mas este grande sucesso militar não conseguiu esconder a percepção que os intervenientes tinham das consequências da evolução das operações: o tempo estava do lado dos libaneses. Tanto era assim que, nesse mesmo dia 6 de Agosto de 2006 era o governo libanês que rejeitava endossar um projecto franco-norte-americano de resolução a apresentar no Conselho de Segurança da ONU. Por eles, a redacção era demasiado favorável aos interesses israelitas... A vila simbólica de Bint Jbeil ainda não caíra nas mãos do Tsahal – nem nunca viria a cair... – e continuavam a cair rockets sobre o Norte de Israel. O reforço crescente dos efectivos postos em linha pelo Tsahal tornava a posição do Hezbollah cada vez mais precária mas é nítido que são os israelitas que têm mais pressa em que se firme um acordo para o cessar das operações. Em 7 de Agosto os xiitas libaneses mostravam que ainda tinham ideiasem carteira quanto tentaram começar a usar drones para continuar a bombardear Israel: começaram por usar um Ababil de concepção iraniana (abaixo) que foi destruído por um F-16 israelita ainda sobre território libanês.
Desde os princípios de Agosto que, nascida não se sabe de onde, surge uma necessidade em crescendo da existência de uma força de interposição robusta que separe os combatentes. Cá em Portugal a ideia apareceu expressa de forma previsível por opinion makers como José Pacheco Pereira. Houve um director de jornal (José Manuel Fernandes) que, convidado por Israel para cobrir o conflito a expensas de um dos contendores, se excedeu na forma como se engajou parcial pelo lado que financia a sua estadia, arrastando atrás de si a publicação que dirige (Público). No cume do disparate, esse jornal publica a 11 de Agosto um título de primeira página anunciando que França e EUA chegam a acordo sobre cessar-fogo como se os intervenientes directos não fossem mais do que marionetas de interesses alheios. É que não o eram e, se o fossem, não seriam esses propriamente (França e Estados Unidos) os dois actores principais em conflito. E desmentindo na prática o Público, a resolução 1701 do Conselho de Segurança da ONU que pôs fim ao conflito só veio a ser votada dali por três dias, a 14 de Agosto, o que, no mínimo, quer dizer que era necessário que mais interlocutores chegassem a acordo...
Para deslustre da argumentação de quem acompanhou o conflito de uma forma facciosa pró-israelita, o balanço final era nitidamente desfavorável a Israel. Não se haviam alcançado qualquer dos objectivos assumidos publicamente: os dois soldados israelitas capturados não foram libertados, as milícias do Hezbollah continuavam presentes no Sul do Líbano, bem longe de terem sido erradicadas conforme se prometera, pelo contrário, o estatuto político da organização e o standing do seu líder, o xeque Nasrallah saíra até reforçado. O único ponto positivo para Israel era o reforço da FINUL, a designação das forças de interposição instaladas na região, vigiando os beligerantes, denunciando as iniciativas das milícias xiitas. No mês seguinte uma Comissão de Inquérito era criada em Israel para analisar o que correra mal. As conclusões dessa Comissão, designada por Winograd (do nome do seu presidente), foram particularmente severas para os dirigentes políticos e militares israelitas numa desautorização retroactiva de muito do que fora doutamente publicado e opinado durante o conflito. Na realidade, constata-se que quando se revê o dia-a-dia noticioso de um conflito como aquele (veja-se este resumo da BBC News ao longo de três semanas: 1, 2, 3), é notório como aquilo que vemos enquanto decorre se assemelha a um encadeado de notícias, como árvores, sem perspectiva de floresta. Que nunca esqueçamos esta lição quando se acompanha acontecimentos destas características - quase tudo o que de importante aconteceu não chegou aos jornais na época.
Este é um texto com tema escolhido, especialmente dedicado ao meu sogro – José Alberto Loureiro dos Santos – com os meus votos para que recupere e que o venha a apreciar como costuma fazer.
Tem vezes que o encadeado dos sucessos diplomáticos de uma administração norte-americana (como os acordos nucleares com o Irão ou o restabelecimento das relações com Cuba) mais se assemelham ao enredo de um blockbuster de Hollywood. Inspirado num Saving private Ryan, tanto sucesso poderia ser sumarizado num Saving presidente Obama... que estará com uma popularidade idêntica à de Matt Damon.
Embora já tenha sido publicado há dois anos (Junho de 2013) só agora descobri estes Imperadores Romanos de Pedro Rabaçal, editados pela Marcador. Tanto a editora quanto o autor escaparão àquele circuito tradicional da promoção dos livros históricos por não terem: a) os contactos académicos necessários para lhe conferir a talchancela científica e/ou b) a notoriedade mediática que dispensa a chancela anterior quando o comprador pensa que conhece o autor. Trata-se porém de um interessante livro de divulgação sobre a civilização romana – é improvável mas não impossível que ainda o venha a ser mas já teria sido decerto um sucesso editorial se algures na capa aparecesse a qualquer título um nome como o de Vasco Pulido Valente...
Paulo Portas deu ontem uma entrevista à SIC Notícias que eu não me esqueci de não ver. Entre outras razões para o (não) ter feito está a convicção – que aqui disponho a ser rebatida com este poste – que um assunto como o famosoGuião da Reforma do Estado de Outubro de 2013 mal terá sido aflorado – se o tiver sido – durante a entrevista. O tema não surge no resumo de três minutos e meio que aquela estação disponibiliza on-line, porém a caixa de comentários abaixo está aberta a quem me elucide se ele foi conversado e, na improbabilidade do caso afirmativo, o que foi dito a respeito de tão importante peça da actuação governamental. Afinal, não será assunto pertinente por estarmos numa fase de balanço da actividade governativa?
A fotografia acima, apesar de inspirada, parece ultrapassada pelos desenvolvimentos tecnológicos. Para além da saturação de aviões junto aos aeroportos (a quase colisão noticiada acima ocorreu junto ao aeroporto de Varsóvia) e da ameaça representada pelas aves no seu meio natural, juntar-se-á agora o perigo dos cada vez mais populares drones. A autora da foto é a russa Marina Lystseva.
Segundo os últimos dados definitivos do INE, em 2013 houve 8.323.600 turistas estrangeiros que visitaram Portugal enquanto os dados preliminares antecipam que em 2014 se tivessem aproximado dos 9 milhões. Há 50 anos a contagem era muito mais metódica e, aparentemente, de um rigor contabilístico a que se juntava uma outra cenografia: o último turista de 1966 recebera o número 1.929.475, era um jovem sueco (onde é que hoje um jovem sueco nos visitaria em férias vestido de forma tão formal?) e o comité de acolhimento vestira-se de uma forma que só se usa nos ranchos folclóricos.
Há 45 anos terminava um imposto dificilmente concebível actualmente: a licença de isqueiro, renovável anualmente, destinada a proteger a indústria fosforeira nacional e cuja supressão vemos acima celebrada pelo Diário de Lisboa de 1 de Junho de 1970. Medida proteccionista de 1937 e 1943, rapidamente tornada anacrónica pela evolução tecnológica, acrescia a isso o desagrado como a opinião pública via o zelo da sua fiscalização, a que não era alheio o facto do autuante e do denunciante (havendo-o) ficarem com 30% do valor da (pesada) multa. Quase tão grave quanto o da PIDE e muitas vezes pior do que o da polícia, todos conheciam uma história de rua evidenciando o despotismo dos fiscais das licenças de isqueiro. Com a chegada dos anos 1960, a licença de isqueiro caíra em tal desprezo que as próprias organizações pilares do regime (como o Movimento Nacional Feminino) a ignoravam, quando distribuíam milhares de isqueiros Zippo como prenda de Natal aos soldados mobilizados em África (abaixo). Por lá, pelos confins africanos, além de não abundarem repartições de finanças onde pagar a licença, também não seria sítio onde a muito desprezada categoria de fiscal de isqueiros estivesse disposta a fiscalizar...
De entre os muitos milhares de protagonistas da Segunda Guerra Mundial, Dirk de Geer (1870-1960) contar-se-á por um dos mais modestos, apesar de ter sido o primeiro-ministro holandês entre Agosto de 1939 e Maio de 1940 em Haia e ainda por mais três meses e meio no exílio em Londres, até princípios de Setembro de 1940. Durante esse período – durante o qual se registou a invasão e ocupação alemã do seu país – sobraçou também as pastas das Finanças e do Interior. Contudo, para o desfecho que a Segunda Guerra Mundial e para a imagem que os Países Baixos pretendem transmitir para o Mundo da sua participação e do seu sofrimento durante ela, Dirk de Geer revelou-se o homem errado, no cargo errado, no momento errado. De Geer era um germanófilo. Passava as suas férias frequentemente na Alemanha e fê-lo ainda uma vez já depois da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Em verdade, mantendo as rotinas de sempre apesar da guerra, a sua atitude reflectia muito mais as expectativas do holandês médio: as de que o seu país escaparia às vicissitudes do conflito. A outra facção, minoritária entre a opinião pública, é que era a agourenta. Mas provou ter razão quando da invasão em Maio de 1940 e é sob o seu elan que é decidida a evacuação do governo e da família real para o Reino Unido. Porém, a convicção profunda do chefe do governo manteve-se: que a guerra nunca poderia ser vencida pelos seus novos anfitriões e defendendo por isso que se procedessem realisticamente a negociações com a Alemanha para que se arranjasse um novo modo de vida com o vencedor. Sob pressão britânica, houve uma remodelação ministerial, e o primeiro-ministro de Geer foi substituído à frente do executivo no exílio por Pieter Gerbrandy (1885-1961), que permaneceu nessas funções até depois do fim da guerra (1940-45).
Restava saber o que fazer com de Geer, que andava a pensar novamente em tirar férias – embora, devido às novas circunstâncias, pensasse agora na Suíça neutral como destino... Seguindo um exemplo que vingara com o antigo rei Eduardo VIII¹, ofereceu-se-lhe um cargo administrativo prestigiado na maior colónia holandesa, a das Índias Orientais, actual Indonésia. De Geer fingiu aceitar mas, ao chegar a Lisboa, primeira escala neutral do périplo para o levar para o outro lado do Mundo, entrou em contacto com os alemães que o autorizaram a regressar aos Países Baixos. Esta deserção daquele que fora até há pouco o chefe do governo holandês foi um tremendo golpe de propaganda para a causa germanófila nos Países Baixos, complementado ainda com a publicação de um panfleto da autoria do regressado com instruções quanto à melhor maneira de colaborar com os ocupantes. As suas convicções tê-lo-ão feito alinhar com o lado errado da História e de Geer veio a ser julgado e condenado por traição em 1947, condenado a um ano de prisão mais três anos de pena suspensa, uma pena assaz benigna quando comparada com as aplicadas a chefes de governo colaboracionistas de outros países: Pierre Laval (1883-1945) em França ou Vidkun Quisling (1887-1945) na Noruega foram fuzilados, Georgios Tsolakoglou (1886-1948) na Grécia viu a sua condenação à morte comutada em prisão perpétua. Dirk de Geer morreu em 1960, em vésperas de se tornar nonagenário, amargurado pela injustiça que considerava que lhe haviam feito e no meio de uma discrição tácita que conquistara a sociedade holandesa quanto aos comportamentos desviantes durante o quinquénio da ocupação alemã. Só mais recentemente – os dois livros acima são de 2012 e 2014 – o tema, de Geer em particular, tem voltado a ser falado.
¹ Conotado de simpatias para com o nazismo e arremessado pelas operações militares para Lisboa, onde se encontrava desde Julho de 1940, decidiu-se em Londres enviar o Duque de Windsor directamente daqui para as Bahamas, para se tornar no governador daquele arquipélago das Antilhas que o próprio qualificou como uma colónia de terceira classe. Ali permaneceu até quase ao fim da guerra (1940-45).
Tanto quanto o grego Aléxis Tsípras, também o húngaro Viktor Orbán é outro dos primeiros-ministros detestados pelo aparelho europeu que dirige a Europa. Embora o seja por razões completamente distintas: a Hungria não aderiu ao Euro e o partido Fidesz pertence ao outro extremo do espectro político. Não possui o mesmo género de simpatias nas redes sociais que o Syriza recolhe mas a sua legitimidade política nacional, assente em duas maiorias eleitorais (2010 e 2014), é até superior. O que pôs a Hungria nas bocas da Europa foi a sua decisão recente de construir um muro na fronteira com a Sérvia, para travar a imigração de refugiados vindos do Próximo Oriente e de África. Reconheça-se que, como dispositivo, há-de ter uma eficáciamuito duvidosa. Mas é uma decisão legítima para tentar estancar um fluxo que, como se vê sobretudo em Itália mas também em outros países do flanco sul da União Europeia (Espanha, Grécia, só não somos nós porque a geografia nos separa de Marrocos), está muito longe de ter solução e/ou de movimentar a tão propalada solidariedade europeia. Que se revela muito mais verbal do que efectiva. É por isso que eu vejo com alguma perplexidade algumas manifestações dos últimos dias, condenando a decisão dos húngaros com um enfâse inesperado – veja-se, apenas para exemplo, o caso de António Vitorino aos microfones da RR. O passado próximo (+ 25 anos) mostra porém quanto o húngaro médio dominará o assunto muito melhor do que aqueles prestigiados opinadores, já que conviveram intimamente com fronteiras assinaladas por muros e cercas - abaixo, lembre-se a fotografia assinalando o corte da que protegia a Hungria da Áustria em 27 de Junho de 1989. Claro que havia a substancial diferença de, em vez da imigração de estrangeiros, esses muros se destinarem a conter a emigração de húngaros... Mas o que verdadeiramente lamento é faltar-me a memória para recordar se Vitorino e outros tantos destes indignados recentes exibiam naquela época nos media idêntica veemência na condenação desses outros muros desses outros regimes.
Interessante entrevista prestada por Jerónimo de Sousa ao Público de hoje onde se pronúncia aprofundadamente sobre o período mais recente da política
interna grega, admitindo – como se pode ler acima – que o governo grego não
esteve nada bem e criticando as suas hesitações, cedências e contradições. É
curioso como, entre as quase 50 perguntas que compõem a entrevista, não tenha
ocorrido à entrevistadora colocar uma ou duas sobre o comportamento equívoco por
parte do KKE, o partido comunista grego irmão do PCP, rival invejoso da ascensão ao poder do Syriza. Eu bem desconfiava que o internacionalismo proletário ou a
solidariedade entre partidos comunistas irmãos deixara de interessar à agenda
mediática e que actualmente o famoso slogan do Manifesto Comunista ter-se-á
modificado do doutrinal proletários de todos os países, uni-vos para um
táctico proletários de cada país, desenrasquem-se (conforme a situação
política local). O que ignorava é como essa evolução dos ensinamentos de Marx e
Engels parece contar com a cumplicidade por ignorância e negligência de um
jornalismo degradado que se mostra incapaz de colocar o par de questões quase obrigatórias que
tornariam a entrevista muito mais interessante.
O plano para o terceiro resgate passou no parlamento grego... e no parlamento alemão. No primeiro caso com os votos favoráveis de 229 (76%) dos 300 deputados; no segundo caso com a concordância de 439 (70%) dos 631 deputados. Mas provocando divisões nos principais partidos no poder. Todavia, lendo as notícias, parece que o problema desses cismas é mais preocupante no Syriza (veja-se, por exemplo, o que escreve o Público). Entre os seus 149 deputados houve 32 que votaram contra e 6 que se abstiveram – cerca de um quarto da bancada (25,5%). Na Alemanha, e a acreditar na corrente de notícias, parecia que a votação tinha sido muito diferente. Mas afinal de entre os 311 deputados da CDU/CSU houve 61 que votaram contra e 5 que se abstiveram (21,2%). Contudo, não fosse a entrevista de Schäuble ao Der Spiegel onde este anuncia ponderar a hipótese de se demitir e até pareceria que, também aqui, o problema político da instabilidade entre a base de apoio governamental era só dos gregos.
Adenda: Por muito se ter falado de Passos Coelho e das figuras dos pequenos e médios países da União armados em importantes, recorde-se aqui as constitucionalidades de alguns deles (Países Baixos, Áustria, Finlândia, Eslováquia ou Estónia) que obrigam também ao voto parlamentar, acompanhando o da Alemanha. Imagine-se o que acontecerá se o parlamento de Bratislava disser que não... Ou então imagine-se a Estónia a desenvolver um problema sério com o seu grande vizinho russo; não seria ocasião para a Grécia retribuir – fazendo de passagem um favor a Moscovo – dessolidarizando-se da Estónia com um impertinente voto do seu parlamento?
Acho muito interessante este quadro, recentemente publicado a propósito da celebração das bodas de diamante da Batalha de Inglaterra, enumerando as nacionalidades das tripulações que nela tomaram parte, numa forma indirecta de mensurar - e homenagear - os apoios com que o Reino Unido contou durante o seu período mais frágil da Segunda Guerra Mundial. Assim, dos quase 3.000 membros das tripulações, 80% eram de origem britânica e uns adicionais 10% pertenciam à sua diáspora (neozelandeses, canadianos, australianos, sul-africanos e rodesianos, alguns vindos das Antilhas, dúzia e meia chegados dos Estados Unidos e da Irlanda neutrais). Outro contingente igualmente significativo (9%) vinha dos países da Europa continental que haviam sido entretanto ocupados pelos exércitos alemães: polacos, checos e eslovacos, belgas ou franceses.
Contudo, tão interessante quanto as nacionalidades que constam do quadro, são as que lá não constam, caso mais óbvio dos holandeses, que se haviam acabado de render aos alemães em Maio de 1940, dois meses antes da Batalha se iniciar. Nessa ocasião, a rainha Guilhermina e o governo holandês haviam partido para o exílio em Inglaterra e intriga descobrir com este quadro que, passados dois meses, não houvesse tripulações holandesas que os tivessem seguido no exílio (afinal, os aeródromos britânicos estavam a 300 km – menos de uma hora de voo – dos dos Países Baixos) e disponíveis para se reengajar no combate.