06 abril 2014

ENTRE OS BONÉS E O SAPO


Junho de 1969. Na primeira volta das eleições presidenciais francesas que se realizaram no primeiro dia do mês, o candidato comunista Jacques Duclos (acima) consegue recolher 4,8 milhões de votos e 21,3% da votação. Era (e permanece até hoje) o melhor resultado de sempre dos comunistas franceses numa eleição presidencial. Eleição essa em que eles humilhavam nas urnas os dois candidatos socialistas também presentes ao escrutínio, Gaston Deferre (SFIO) e Michel Rocard (PSU), que haviam alcançado apenas 5,0% e 3,6% respectivamente. Mas também era um resultado amargo e doce para os comunistas, porque eles acabavam por fracassar naquele que seria o objectivo principal daquelas eleições: a passagem do seu candidato à segunda volta. Os dois candidatos mais votados haviam sido os dois da direita, Georges Pompidou e Alain Poher com 44,5% e 23,3%, respectivamente. O primeiro com uma perspectiva mais gaulista, o segundo com uma mais atlantista.
Para a segunda volta, que se disputava dali por quinze dias, os comunistas prepararam um slogan, realçando a indistinguibilidade entre os dois candidatos da burguesia, os dois Pês, os irmãos siameses, os primos irmãos: blanc bonnet, bonnet blanc, expressão do francês coloquial que se equiparará ao nosso ser igual ao litro. O apelo à abstenção era explícito, como se lê no cartaz acima. Na segunda volta de 15 de Junho venceu Georges Pompidou mas o PCF perdeu muito do que conquistara na primeira volta. É verdade que o número de abstencionistas subiu 2,6 milhões de um turno para outro e que o número de eleitores que anulou o voto aumentou outro milhão (de 0,3 para 1,3 milhões), mas, mesmo apresentando os cálculos da forma mais favorável (esquecendo que muitos do que optaram por se abster ou anular o voto podiam ter sido dos 2,5 milhões de eleitores que haviam votado em outros candidatos de esquerda na primeira volta), sobravam ainda (4,8 – 2,6 – 1,0 =) 1,2 milhões de eleitores de Jacques Duclos (i.e. ¼ do total) que haviam votado num dos candidatos da direita.
Janeiro de 1986. Os resultados da primeira volta das eleições presidenciais portuguesas provocaram nos comunistas um sabor amargo semelhante ao dos seus camaradas franceses 16 anos e meio antes. Os quase 1,2 milhões de votos (20,9%) recebidos pelo candidato apoiado pelos comunistas (Salgado Zenha, acima à esquerda) não lhe permite apresentar-se na segunda volta. A vontade da direcção do PCP em apoiar o candidato da esquerda da segunda volta, o socialista Mário Soares (à direita), considerada a história recente dos dois partidos, deve ser idêntica à que os seus homólogos franceses haviam mostrado quanto a Pompidou ou Poher. Mas o PCP, ao contrário do PCF de 1969, já havia passado por uma experiência do que pode ser a indisciplina do eleitorado quando de eleições presidenciais: em 1976, quando o partido apresentara uma candidatura administrativa e sem qualquer carisma haviam-se perdido mais de metade dos votos que ele recebera nas legislativas realizadas apenas dois meses antes. Se optasse pela atitude dos bonés, o PCP era bem capaz de ficar a apanhá-los
Mesmo prestando-se aos maiores sarcasmos, a reviravolta do PCP para a segunda volta das eleições presidenciais desse ano, apoiando Soares, foi a atitude que os impediu de perder tudo. Contra Freitas, Votar Soares (acima) ou a frase mais coloquial engolir um sapo que, como a pasta medicinal Couto, andava então na boca de toda a gente, eram humilhações a pagar pela preservação da fábula – que se mantém até à actualidade – que era o PCP que comandava a inflexão do voto do seu eleitorado e que este se mostrava renitente mas disciplinado. Claro que os acontecimentos de 1976, quando mais de metade do eleitorado comunista havia votado em Otelo Saraiva de Carvalho, demonstram quanto esse controle é falso e quanto em Fevereiro de 1986 se fingia apascentar as ovelhas embora levando-as para onde se adivinhava que elas queriam ir. Como é sabido, Mário Soares venceu a segunda volta, mas note-se que, mesmo assim, recebeu menos 38 mil votos do que o somatório dos votos dos três candidatos da esquerda na primeira volta.

…e ao contrário do que cantam os Heróis do Mar neste último vídeo, não sendo supersticiosos (assim manda o carácter científico do socialismo que professavam), no PCP fez-se o impossível para dar a volta ao azar naquelas eleições.

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