Certo dia da década de 1920 ou 1930, durante uma entrevista a um jornalista, um veterano daquela que era então conhecida pela Grande Guerra (Primeira Guerra Mundial) contou um episódio em que, estando a almoçar com os camaradas nas trincheiras, ouviu uma voz interior a mandá-lo levantar-se dali e a mudar-se imediatamente para um outro sítio. A instrução era tão imperativa e tão clara que o destinatário obedeceu como se se tratasse de uma ordem militar. Levantou-se e andou uns vinte metros de trincheira com a marmita na mão até ao local indicado, onde se sentou e regressou aos seus pensamentos. Acabara de o fazer quando se sentiu um estrondo e um clarão vindo do sítio de onde acabara de sair. Um tiro da artilharia inimiga acabara de acertar em cheio no meio do grupo de onde ele acabara de sair e todos os que o integravam tinham morrido.
Este é o género de história que se poderia ouvir a muitos veteranos de guerra, escutado com um misto de respeito temperado por um cepticismo disfarçado, como acontece tradicionalmente com estes episódios premonitórios que salvam a vida do narrador. Mas o que tornava especial a narrativa, o que fazia com que a audiência do veterano fosse um jornalista estrangeiro, ainda para mais naqueles anos em que ainda abundavam destas reconstituições, era o nome do veterano: Adolf Hitler. Para uma formação política – o NSDAP – cuja referência mais marcante era a injustiça do desfecho da Grande Guerra, o comportamento do seu líder máximo durante o conflito revestia-se de uma importância crucial. Desde cedo que a máquina de propaganda nazi – o habilidoso Doktor Goebbels – se apercebeu que esse aspecto da imagem tinha que ser melhor trabalhado.
E havia muito trabalho a fazer. Ao contrário de, por exemplo a segunda figura da hierarquia nazi, Hermann Göring, que fora um aviador herói de guerra creditado com 22 vitórias e condecorado com a Pour Le Mérite, Adolf Hitler nunca passara de Gefreiter. Ora Gefreiter é um posto assaz discreto na hierarquia militar alemã, o segundo a contar de baixo, apenas superior à categoria de soldado. A habilidade de Goebbels consistiu em transformar esse modesto registo militar de Hitler durante a Guerra no de um combatente normal, embora empenhado e de convicções firmes desde a primeira hora. É assim que em 1933, numa pesquisa que poderá ser interpretada como uma sessão precoce e politizada do jogo infantil Onde Está o Wally o vão identificar numa fotografia tirada numa das principais praças de Munique acolhendo o desencadear da Guerra em 1 de Agosto de 1914 (abaixo).
Adolf Hitler, que tinha então 25 anos e era súbdito austríaco, dispensado do serviço militar no seu país por razões médicas, pediu uma licença especial para servir como voluntário numa unidade bávara. E dois meses depois estava na frente de batalha, a tempo de participar na Batalha da Flandres em Outubro de 1914. A Hitler foi dada a tarefa de mensageiro. Transmitiam as mensagens entre os postos de comando (PC) quando as linhas de telefone não estavam instaladas ou deixavam de funcionar – o que era tão frequente que era preferível ter soldados encarregues dessa função a tempo inteiro. Segundo o próprio, tratava-se de uma tarefa arriscada conforme ele se descreve numa carta sujeitando-se a uma morte quase certa sob uma saraivada de metralha em cada metro do percurso. Outras investigações mais recentes parecem indicar que afinal Hitler estaria adstrito ao PC do regimento, que normalmente se situava a quilómetros da frente.
Corroborando que haveria alguma pose da sua parte, há nestas duas fotografias, a imediatamente acima e abaixo, algo que sugere aquele retrato psicológico de quem se exibe por não conviver directamente com o perigo. Era um fenómeno conhecido das nossas Guerras em África que os soldados que mais se dispunham a enviar fotografias suas de camuflado e G-3 para a família eram aqueles que não precisavam de os usar em situações de stress, porque não iam para o mato. Acima, Hitler é o único dos soldados daquele abrigo mal iluminado a deixar-se fotografar de capacete (pickelhaube) posto e abaixo mostra-se prazenteiro para fazer um serviço que, atendendo ao enquadramento urbano, só poderá ser de sentinela. Todavia, o mais provável é que as condições em que servia tivessem ido mudando: em Outubro de 1916, com dois anos de frente, Hitler foi ferido numa perna, atingido por um estilhaço de artilharia.
É neste momento que o departamento do Doutor Goebbels o porá depois a reclamar, pedindo para não ser evacuado... Mas foi, acabando por passar os cinco meses seguintes a recuperar num hospital de Berlim. Regressou à frente em Março de 1917, nas mesmas funções de mensageiro, com um estatuto de veterano mas o mesmo posto, e a crueza do facto a demonstrar a falta da apreciação dos seus superiores como um potencial condutor de homens. Na Primavera de 1918, perto de Soissons, quando Adolf Hitler transportava uma mensagem encontrou uma patrulha de quatro franceses e, cheio de iniciativa e sangue-frio, de pistola em punho, aprisionou-os. Virá depois a ser condecorado no Verão com a Cruz de Ferro de 1ª Classe, única, conjuntamente com a dos ferimentos em campanha, das condecorações militares que envergará depois da ascensão ao poder.
No Outono de 1918, a situação militar já se mostrava muito complicada para os alemães. A contribuição norte-americana em homens e material havia provocado um desequilíbrio na frente que os obrigava a recuar progressivamente. Em 14 de Outubro, a abrir a que viria a ser baptizada por Batalha de Courtrai, os britânicos desencadearam um bombardeamento prévio com gás mostarda. A guerra química banalizara-se e tornara-se também num jogo psicológico: uns dez minutos depois da barragem ter cessado, uma última salva vem apanhar os soldados alemães desprevenidos, já sem máscaras e a recuperar fôlego. Entre os surpreendidos estava Hitler que, momentaneamente cego, teve de ser evacuado agarrando-se a camaradas nas mesmas condições. A guerra para ele terminara, tendo ido recuperar desta vez para um hospital em Pasewalk na recatada Pomerânia Ocidental.
Hoje torna-se praticamente impossível avaliar com objectividade o desempenho de Adolf Hitler como combatente ao longo daqueles quatro anos como Gefreiter, de Outubro de 1914 a Outubro de 1918. Por um lado, os anos do III Reich permitiram a sonegação e a criação de documentação conveniente para sustentar a tese do soldado aplicado com arremedos de coragem que prenunciavam a sua ascensão a Führer. Por outro lado, há factos incontornáveis, as condecorações mas também as (não) promoções que recebeu, mas trata-se do género de pessoa de que todos têm uma opinião, o que influenciará certamente quaisquer análises que se pretendam fazer. Contando com estas restrições que se poderá dizer com segurança sobre o Gefreiter Adolf Hitler? Sobretudo que foi um individuo que teve sorte apesar de tudo, num conflito que mobilizou onze milhões de alemães e onde um em cada seis desses mobilizados veio a morrer.
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