Old Sarum é a designação do local onde inicialmente se situava a urbe que mais tarde veio a transformar-se na moderna cidade de Salisbury (115.000 habitantes) na Inglaterra (mapa de cima). Localizado em local relativamente elevado, o que permite controlar à distância as aproximações a partir de cinco vias naturais distintas, crê-se que o local tivesse sido habitado desde a pré-história.
Sabe-se o nome pelo qual o local ficou conhecido durante o período de domínio romano (Sorviodunum) e como continuou a cumprir a sua importante função militar, indício que durante os mais de 350 anos desse período as condições de segurança geral vigentes na Grã-Bretanha nunca se assemelharam às que trouxeram a prosperidade aos países da Europa meridional e da cintura Mediterrânica sob o mesmo domínio.
Mesmo após o fim do domínio romano (princípios do Século V) a importância militar do local continuou a ser reconhecida e durante o período medieval (Século XI) foi ali erigido um Castelo ao mesmo tempo que, como era costume na época, se tornava a sede de uma diocese, e se procedia à construção da respectiva catedral. Apenas os aspectos militares justificavam a localização daquelas infra-estruturas num sitio elevado e agreste.
A melhoria das condições gerais de segurança, despoletado por um conflito entre os dois braços do poder (clero e nobreza) levou à deslocação da residência do bispo, nos inícios do Século XIII, para sítios mais amenos e férteis, nas margens do rio Avon, que corre ali perto. Essa mudança acabou por polarizar a fixação de populações em terrenos mais amenos e ao aparecimento de uma nova povoação, New Sarum, que hoje tem o nome de Salisbury.
A Europa está recheada de episódios semelhantes, onde antigas povoações fortificadas deram origem, por essa época, a novas povoações, localizadas a curta distância, em lugar mais ameno e mais favorável para a agricultura. Para dar apenas um exemplo português, encontramo-lo nas povoações alentejanas de Monsaraz (imagem de baixo) e de Reguengos de Monsaraz. O engraçado é que a fama de Old Sarum começa com a sua decadência.
Por séculos e séculos Old Sarum manteve a importância formal que outrora tivera, nomeadamente porque mantinha a capacidade de ser representada na Câmara dos Comuns por dois representantes. De acordo com os costumes tradicionais ingleses – que até nem eram muito distintos dos praticados nas Cortes portuguesas da mesma época – as cidades faziam-se representar nessas Assembleias pelos seus delegados.
Trata-se de um sistema de representação, embora de uma sofisticação muito embrionária, onde se torna importante que as regras que presidem à sua constituição evoluam com a realidade – nas Cortes portuguesas, por exemplo, tem significado estudar a evolução da importância relativa das cidades em Portugal, verificando a ordem com que os seus representantes se sentavam (mais à frente ou mais para trás) quando participavam nos trabalhos.
Tanto em Portugal como na Inglaterra, era uma prerrogativa real atribuir ou retirar essa capacidade de representação. A evolução política que levou a que, em Inglaterra, a classe social dominante exercesse o seu poder através da Câmara dos Comuns, retirando muitos dos poderes reais, teve a consequência colateral de impedir o monarca de ajustar a composição do Parlamento à evolução demográfica e económica do país.
Depois de cerca de 150 anos sem quaisquer reformas na sua composição – as últimas haviam sido efectuadas no reinado de Carlos II (1660-85) – a Câmara dos Comuns britânica na década de 1820 continha membros que tinham sido para ali eleitos por círculos eleitorais muito bizarros, conhecidos colectivamente pelo epíteto de rotten boroughs*, de que o mais famoso é o de Old Sarum, que dá titulo a este poste.
No inventário feito em 1831 a respeito desses círculos, concluiu-se que em Old Sarum havia três habitações… onde ninguém votava, porque os 11 eleitores registados naquele círculo eram todos não residentes… Como o voto não era secreto, compreende-se a facilidade com que se podia comprar a eleição para um dos dois lugares a que Old Sarum tinha direito no Parlamento britânico. Um dos compradores chamara-se William Pitt, o Velho (em baixo), uma das figuras mais marcantes da política inglesa do Século XVIII…
Talvez tão obscenos, seriam os casos de Gatton (23 casas e 7 eleitores), Bramber (35 casas e 20 eleitores) ou Newtown (14 casas e 23 eleitores). Convêm esclarecer que os direitos de voto na época eram muito restritivos, mas, mesmo assim, estima-se que houvesse entre 200.000 a 400.000 eleitores em todos o Reino Unido. E havia outras restrições quanto a quem podia ser eleito: católicos e judeus estavam excluídos, por exemplo.
Em 1832 foi aprovada uma primeira lei que reformou o sistema eleitoral, abolindo a maioria desses círculos eleitorais escandalosos e alargando a capacidade de voto a novas classes. Essas reformas foram prosseguidas noutras leis posteriores em 1867 (alargamento do eleitorado), 1872 (voto secreto), 1885 (círculos homogéneos) e 1918 (voto feminino).
O actual sistema uninominal britânico foi-se construindo gradualmente e há aspectos em que ele é muito propenso a que possa ser facilmente desrespeitado por quem esteja no poder: na reconfiguração dos círculos eleitorais em benefício do partido governamental, por exemplo** - veja-se abaixo, em verde, o resultado disso no formato anacrónico do 7º círculo eleitoral do estado da Geórgia, nos Estados Unidos...
Este extenso poste sobre Old Sarum serve para concluir em como me custa ouvir a superficialidade da argumentação que se vai ouvindo por aí, defendendo a implementação em Portugal de sistemas eleitorais com base em círculos uninominais. Quem o faz, por um lado parece não conhecer a história e as fragilidades do sistema que preconiza e por outro parece não conhecer capazmente a sociedade do país onde vive…
* Burgos apodrecidos, no sentido de decadentes.
** É muito praticada nos Estados Unidos, e a prática é conhecida por gerrymandering.
Sabe-se o nome pelo qual o local ficou conhecido durante o período de domínio romano (Sorviodunum) e como continuou a cumprir a sua importante função militar, indício que durante os mais de 350 anos desse período as condições de segurança geral vigentes na Grã-Bretanha nunca se assemelharam às que trouxeram a prosperidade aos países da Europa meridional e da cintura Mediterrânica sob o mesmo domínio.
Mesmo após o fim do domínio romano (princípios do Século V) a importância militar do local continuou a ser reconhecida e durante o período medieval (Século XI) foi ali erigido um Castelo ao mesmo tempo que, como era costume na época, se tornava a sede de uma diocese, e se procedia à construção da respectiva catedral. Apenas os aspectos militares justificavam a localização daquelas infra-estruturas num sitio elevado e agreste.
A melhoria das condições gerais de segurança, despoletado por um conflito entre os dois braços do poder (clero e nobreza) levou à deslocação da residência do bispo, nos inícios do Século XIII, para sítios mais amenos e férteis, nas margens do rio Avon, que corre ali perto. Essa mudança acabou por polarizar a fixação de populações em terrenos mais amenos e ao aparecimento de uma nova povoação, New Sarum, que hoje tem o nome de Salisbury.
A Europa está recheada de episódios semelhantes, onde antigas povoações fortificadas deram origem, por essa época, a novas povoações, localizadas a curta distância, em lugar mais ameno e mais favorável para a agricultura. Para dar apenas um exemplo português, encontramo-lo nas povoações alentejanas de Monsaraz (imagem de baixo) e de Reguengos de Monsaraz. O engraçado é que a fama de Old Sarum começa com a sua decadência.
Por séculos e séculos Old Sarum manteve a importância formal que outrora tivera, nomeadamente porque mantinha a capacidade de ser representada na Câmara dos Comuns por dois representantes. De acordo com os costumes tradicionais ingleses – que até nem eram muito distintos dos praticados nas Cortes portuguesas da mesma época – as cidades faziam-se representar nessas Assembleias pelos seus delegados.
Trata-se de um sistema de representação, embora de uma sofisticação muito embrionária, onde se torna importante que as regras que presidem à sua constituição evoluam com a realidade – nas Cortes portuguesas, por exemplo, tem significado estudar a evolução da importância relativa das cidades em Portugal, verificando a ordem com que os seus representantes se sentavam (mais à frente ou mais para trás) quando participavam nos trabalhos.
Tanto em Portugal como na Inglaterra, era uma prerrogativa real atribuir ou retirar essa capacidade de representação. A evolução política que levou a que, em Inglaterra, a classe social dominante exercesse o seu poder através da Câmara dos Comuns, retirando muitos dos poderes reais, teve a consequência colateral de impedir o monarca de ajustar a composição do Parlamento à evolução demográfica e económica do país.
Depois de cerca de 150 anos sem quaisquer reformas na sua composição – as últimas haviam sido efectuadas no reinado de Carlos II (1660-85) – a Câmara dos Comuns britânica na década de 1820 continha membros que tinham sido para ali eleitos por círculos eleitorais muito bizarros, conhecidos colectivamente pelo epíteto de rotten boroughs*, de que o mais famoso é o de Old Sarum, que dá titulo a este poste.
No inventário feito em 1831 a respeito desses círculos, concluiu-se que em Old Sarum havia três habitações… onde ninguém votava, porque os 11 eleitores registados naquele círculo eram todos não residentes… Como o voto não era secreto, compreende-se a facilidade com que se podia comprar a eleição para um dos dois lugares a que Old Sarum tinha direito no Parlamento britânico. Um dos compradores chamara-se William Pitt, o Velho (em baixo), uma das figuras mais marcantes da política inglesa do Século XVIII…
Talvez tão obscenos, seriam os casos de Gatton (23 casas e 7 eleitores), Bramber (35 casas e 20 eleitores) ou Newtown (14 casas e 23 eleitores). Convêm esclarecer que os direitos de voto na época eram muito restritivos, mas, mesmo assim, estima-se que houvesse entre 200.000 a 400.000 eleitores em todos o Reino Unido. E havia outras restrições quanto a quem podia ser eleito: católicos e judeus estavam excluídos, por exemplo.
Em 1832 foi aprovada uma primeira lei que reformou o sistema eleitoral, abolindo a maioria desses círculos eleitorais escandalosos e alargando a capacidade de voto a novas classes. Essas reformas foram prosseguidas noutras leis posteriores em 1867 (alargamento do eleitorado), 1872 (voto secreto), 1885 (círculos homogéneos) e 1918 (voto feminino).
O actual sistema uninominal britânico foi-se construindo gradualmente e há aspectos em que ele é muito propenso a que possa ser facilmente desrespeitado por quem esteja no poder: na reconfiguração dos círculos eleitorais em benefício do partido governamental, por exemplo** - veja-se abaixo, em verde, o resultado disso no formato anacrónico do 7º círculo eleitoral do estado da Geórgia, nos Estados Unidos...
Este extenso poste sobre Old Sarum serve para concluir em como me custa ouvir a superficialidade da argumentação que se vai ouvindo por aí, defendendo a implementação em Portugal de sistemas eleitorais com base em círculos uninominais. Quem o faz, por um lado parece não conhecer a história e as fragilidades do sistema que preconiza e por outro parece não conhecer capazmente a sociedade do país onde vive…
* Burgos apodrecidos, no sentido de decadentes.
** É muito praticada nos Estados Unidos, e a prática é conhecida por gerrymandering.
Salisbury, essa pequena cidade histórica, em cuja enorme catedral repousa a Magna Carta.
ResponderEliminarUma das cópias da Magna Carta.
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