07 março 2007

A ILHA QUE QUER DEIXAR DE SER CHINESA

Em todas as grandes reuniões internacionais é tradicional levantar-se sempre um problema de semântica quando se chega à escolha quanto à designação da República da China que, bem distinta e minúscula em comparação com a sua grande vizinha República Popular, abrange apenas a ilha de Taiwan (ou Formosa) e algumas dependências, 23 milhões de habitantes (em 2006) em 36.000 Km2.

A República Popular da China faz finca-pé em não aceitar que mais ninguém compartilhe consigo a pretensão de representar a China, dispondo-se mesmo aos limites de abandonar o evento se isso acontecer, o que obriga os países organizadores a prodígios de imaginação para designar a delegação vinda da Formosa. A prática mais comum consiste em designá-la por… chineses de Taipé (a capital).

Contudo, a História antiga de Taiwan não tem nada a ver com a da China. As populações mais antigas da ilha – que ainda hoje totalizam cerca de 2% da população – são de origem malaia. Entre os linguistas há uma importante escola que defende que a ilha foi o berço de onde evoluíram o ramo das línguas austronésias, hoje representado pela quase totalidade dos idiomas usados na Indonésia, nas Filipinas ou na Malásia.
Note-se que, como aconteceu com a Grécia antiga no Mediterrâneo, esta expansão marítima dos originários de Taiwan, cuja data e duração é difícil de precisar, mas que não tendo sido constituída por grandes contingentes, pode ter perdurado por milénios*, deve ter sido carregada de rivalidades: ainda hoje, a pequena minoria aborígene de Taiwan está dividida em mais de uma dúzia de tribos que empregam idiomas distintos entre si.

As primeiras provas comprovadas da instalação de chineses na ilha datam apenas do Século XII. Mas em pequeno número. Quando os portugueses chegaram ao Extremo Oriente, no Século XVI, os chineses ainda eram apenas uma minoria da população da ilha que os recém-chegados baptizaram por Formosa. Em 1624, os holandeses substituíram-nos na suserania exercida sobre a ilha e os arquipélagos adjacentes (um dos quais ficou até hoje com a designação portuguesa de Pescadores).

A partir de 1644, a dinastia manchu dos Qing substituiu a dos Ming no exercício do poder imperial em Pequim, enquanto muito dos dignitários do regime deposto se procuraram refugiar em Taiwan, acelerando substancialmente o fluxo da imigração de chineses, especialmente os originários da província continental de Fujian (que se situa diante de Taiwan).

Expulsos os holandeses, copiando de alguma forma o que veio a acontecer quase 300 anos depois, entre 1662 e 1683, Taiwan tornou-se o último refúgio dos dignatários do regime Ming que havia sido derrotado no continente. Como consequência de se ter um desafio moral à autoridade do regime em vigor no continente, Taiwan foi invadida e viu-se, pela primeira vez, sob o domínio efectivo da China.

Nos duzentos anos seguintes, a aculturação e a imigração fizeram aumentar a proporção de chineses entre a população embora o idioma falado por eles seja baseado no de Fujian (não é compreensível para um falante de mandarim de Pequim, por exemplo). Essa especificidade foi aproveitada pelos japoneses quando anexaram a ilha em 1895, na sequência da sua vitória na 1ª Guerra Sino-Japonesa.

Taiwan foi a primeira colónia japonesa, onde estes se dedicaram a criar um modelo social que servisse de montra da sua administração benévola e que conduziu a uma sociedade que acabou necessariamente por divergir da que vigorava no continente: a reforma agrária deu origem ao predomínio da classe de pequenos camponeses proprietários (escassa no continente) e o sistema de ensino (embora em japonês) tornou-os em média muito mais qualificados do que os seus homólogos continentais.

Assim, compreende-se como o retorno de Taiwan à soberania chinesa, no final da Segunda Guerra Mundial (1945), é também marcado pelo despeito dos continentais (que consideravam os nativos de Taiwan como uma espécie de colaboracionistas do Japão). A revolta destes últimos ao aparelho administrativo nacionalista chinês em Fevereiro de 1947, depois de vários precedentes, foi sufocada com um custo estimado entre as 10 e as 28 mil vítimas. Um episódio que ultimamente tem ganho grande destaque na política de Taiwan...

Mas, com a derrota final dos nacionalistas na Guerra Civil (Outubro de 1949) travada no comntinente, Taiwan tornou-se (mais uma vez…) o refúgio do regime derrotado no continente. Acompanhando-o, vieram mais de dois milhões de pessoas que se instalaram na ilha. Só que, ao contrário do precedente do Século XVII, desta vez o regime deposto teve o apoio no exílio da potência marítima dominante (Estados Unidos), o que tem garantido a sua sobrevivência desde então.

Durante um quarto de século (1949-75), Taiwan viveu sob o domínio daqueles exilados e sob a ficção que era apenas um entreposto provisório até à reconquista do resto da China. O resultado podia assumir aspectos ridículos: o órgão legislativo da República da China, o Yuan Legislativo, era composto teoricamente por mais de um milhar de membros, mas onde só os exilados participavam nos trabalhos e mesmo esses não podiam ser substituídos, nem mesmo por morte do titular, se representassem círculos do continente…

Corrigidos progressivamente alguns desses absurdos de ter uma Assembleia Legislativa destinada a desaparecer por razões biológicas, ao longo dos últimos trinta anos, a política de Taiwan te-se caracterizado por um equilíbrio precário entre o Kuomintang (KMT - o Partido derrotado pelos comunistas na Guerra Civil) que, esquecidas as ambições irrealistas de reconquistar o continente, pretende vincar os laços que ainda unem a ilha ao continente, muito embora se ponha o problema das divergências com Pequim sobre a forma como isso poderá ser feito, e, por outro lado, os independentistas.

Se a pretensão do KMT, que o regime sedeado em Taiwan representa também a China era um incómodo para Pequim, então a nova pretensão dos independentistas do Partido Democrático Progressista (PDP) que Taiwan não faz parte da China, incomoda muito mais... Ao contrário de muitos outros conflitos de nacionalidades e separatismos, neste não se põe qualquer problema quanto à viabilidade económica do futuro país…

Pelo contrário, para as duas províncias costeiras no Sul da China, Fujian e Guangdong (Cantão), que desde a abertura económica chinesa são o destino tradicional dos capitais investidos no estrangeiro por Taiwan, e que historicamente nunca foram muito fiéis ao poder imperial emanado do Norte, a existência de uma outra nação chinesa** independente, em frente às suas costas, como seria o caso de Taiwan, nessa eventualidade, seria um estímulo e um problema que Pequim prefere que nem exista…

*A expansão marítima dos malaios fê-los atravessar o Oceano Índico chegar à ilha de Madagáscar em África.
** Já existe Singapura. Não é muito referido, mas mais de ¾ da sua população é de ascendência chinesa.

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