O RELATÓRIO DO DEPARTAMENTO DE ESTADO

Anualmente, o Departamento de Estado norte-americano emite um Relatório sobre as Práticas do Respeito dos Direitos Humanos no Mundo, emitindo, detalhadamente e por país, as suas considerações sobre o tema. Normalmente, os redactores do dito relatório gostam de dizer coisas sobre todos os países, incluindo mesmo as democracias aliadas dos Estados Unidos, e o que escrevem acaba por não ter proporcionalidade: as eventuais duas dúzias de incidentes de maus-tratos da população prisional na Alemanha constam do relatório com a mesma redacção e vigor que o extermínio da população tchechena perpetrado pelo Exército russo…

Sobretudo, os relatórios têm um descomunal handicap moral (e nisso ele parece-se com as famosas preocupações ecologistas do Greenpeace…): não emitem quaisquer considerações sobre as práticas do respeito dos Direitos Humanos dentro dos próprios Estados Unidos... Com estas características, já se tornou tradicional a cenografia que se segue à sua publicação: os países no ponto de mira dos Estados Unidos (Coreia do Norte, Irão, Cuba), conjuntamente com as potências mais hostis (China, Rússia) mandam os redactores ir pregar moral para o seu país*, enquanto que os países seus aliados costumam ignorar o relatório para não terem de fazer a mesma coisa e provocar uma hostilidade desnecessária por parte dos Estados Unidos…
Ora, tudo isto não deve ser propriamente novo para o Governo português que, como os seus homólogos ocidentais, costumava a ignorar o relatório ou, quando instado para o comentar pela comunicação social, lhe apontava de raspão as óbvias incongruências. Este ano, pelos vistos, parece que esse programa mudou. A suavidade do costume deu lugar a uma linguagem mais forte, atente-se aos comentários de António Costa no Público, e o espaço consagrado ao assunto alargou-se: a SIC Notícias dedicou-lhe o seu programa da manhã (onde, numa organização à Fórum TSF, obviamente se concluiu que 85% da audiência achava que os Estados Unidos não tinham moralidade alguma para comentar o assunto…).

Com António Costa na jogada, guardei para o fim a pergunta maliciosa: estaremos por acaso a preparar na opinião pública a predisposição necessária para que se venha a descobrir que afinal os Estados Unidos andaram a fazer passear por território português uns aviões transportando prisioneiros em circunstâncias que não respeitavam os Direitos Humanos? É que aproveitando o conteúdo acusador deste relatório, e tornando-se a posição governamental cada vez mais insustentável (agora são os espanhóis a pedir-nos informações sobre os voos...) era uma boa maneira de parecer que até foram os americanos que desencadearam a bronca…

* Onde já havendo imenso por onde se entreterem (pena de morte, polícia propensa ao emprego excessivo de armas, etc.), ficaram com muito mais depois de 2001, da aprovação da legislação anti-terrorismo e do uso da extra-territorialidade da prisão de Guantanamo, em Cuba, para práticas de detenção e interrogatório mais imaginativas.