«Pedem-nos a publicação da seguinte acta:
Acta Única: Aos sete dias do mês de Junho de mil novecentos e vinte e nove, ás quinze horas e trinta minutos se reuniram numa dependência do Club Tauromáquico os srs. tenente-coronel Cristóvão Aires de Magalhães e Pedro Bordallo Pinheiro, como representantes do sr. João de Ortigão Ramos (à esquerda), e os srs. drs. Manuel de Queiroz e Raul Barbosa Viana, como representantes do sr. Henrique Lehrfeld (à direita) a fim de derimirem (sic) uma pendência de honra entre os seus constituintes suscitada. Trocadas as respectivas credenciais pelos representantes do sr. João de Ortigão Ramos, foi presente como matéria prévia e antes de entrarem propriamente na discussão dos motivos da pendência a afirmação por parte do seu constituinte de que não obstante não ter sido acatada pelo sr. Henrique Lehrfeld a doutrina expressa nos Códigos de Honra na parte em que estes estabelecem prazos improrrogáveis para resposta ao envio de testemunhas, essa facto não impede que mesmo fora desses prazos o sr. João de Ortigão Ramos continue a insistir pela reparação a que se julga com direito, tendo as testemunhas deste julgado atendíveis as explicações dadas ácerca dessa falta pelas testemunhas do sr. Henrique Lehrfeld.
Entrando em matéria da pendência, pelos primeiros signatários foi dito que o seu constituinte se julgava ofendido na sua honra pela seguinte expressão contida numa carta publicada na revista O Volante, de 19 de Maio do corrente ano, assinada pelo sr. Henrique Lehrfeld:
«efectivamente tenho sangue alemão, com o que me honro bastante, e já não diria o mesmo se tivesse sangue de preto.»
Desta expressão exigem uma absoluta retratação ou reparação pelas armas.
Pelos representantes do sr. Henrique Lehrfeld foi declarado, em nome do seu constituinte, que este ao escrever a referida frase não teve a mínima intenção de ofender levemente o sr. João de Ortigão Ramos, pelo facto de que ignora a sua ascendência não podendo assim justificar-se qualquer sentido pejurativo (sic) que possa ter sido atribuído a essa frase.
Dadas estas explicações, pelos quatro signatários foi considerada finda esta pendência com honra para ambas as partes.
aa Cristóvão Aires de Magalhães
aa Pedro Bordallo Pinheiro
aa Manuel de Queiroz
aa Raul Barbosa Viana»
A "pendência", que é apresentada em ante-título como «entre dois "sportsmen"», é cómica de ridícula e não foram precisos terem-se passado noventa anos para que isso se torne evidente. Tão evidente quanto o elevado estatuto social que se depreende ser o de todos os envolvidos (não só os potenciais duelistas, como também as testemunhas), quando se reúnem no Club Tauromáquico(!), porque têm influência suficiente para que a acta da reunião se torne notícia de jornal. Nessa acta, por outro lado, convivem alegremente evocações aos Códigos de Honra (assim mesmo, em maiúsculas) com pontapés na gramática como dirimir com e e pejorativo com u. Mas o ápice do ridículo é a atitude do ofensor da pendência, Henrique Lehrfeld, que se retrata com uma explicação inverosímil: a sua evocação do «sangue de preto», se não era uma sugestão ofensiva, faz naquele contexto tanto sentido quanto uma viola num enterro. Ainda uma explicação adicional a respeito das ascendências: ter-se sangue alemão em 1929 não possuía a reputação que outrora gozara entre nós. Precisamente nesse mesmo dia, 7 de Junho de 1929, os vencedores da Grande Guerra reunidos em Paris engendravam o Plano Young, com o fito de ver se a Alemanha começava a pagar as dívidas do Tratado de Versalhes.
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