Este texto que aqui publico no blogue é a minha tradução de uma pequeníssima parte (pp. 165-168) do livro abaixo, The Imperial War Museum Book of The Western Front, publicado em 1993. Trata-se de um livro que, mais do que a perspectiva britânica da história da Primeira Guerra Mundial na Frente Ocidental, conta as pequenas histórias individuais dos britânicos que nela participaram, sustentadas por cartas, diários e outros escritos da época. O trecho que escolhi é muito interessante porque constituído pela apresentação e pela transcrição de partes do diário de um dos oficiais britânicos que serviram de oficiais de ligação entre o CEP (Corpo Expedicionário Português) e o Exército britânico (BEF) durante os anos finais da Primeira Guerra Mundial (1917-18). As transcrições do diário estão em itálico e identifiquei no texto alguns erros factuais – que assinalei, para além de outros comentários e explicações no hipertexto que considerei pertinentes.
Infelizmente, os portugueses não iriam adquirir uma grande reputação na Frente Ocidental nem se iriam distinguir particularmente pelo seu desempenho militar. Para eles tratava-se de um conflito que se travava longe de casa; a sua participação era mais para ser levada em conta pelo seu valor simbólico do que pelo valor combativo. O nome que os britânicos usavam para designar normalmente os portugueses era pork and beans (as duas formas – português e porco e feijões – são quase homófonas quando pronunciadas em inglês). Contudo, Dartford nunca emprega esse termo num cuidadoso diário detalhado que manteve durante os muitos meses em que serviu com eles; designa-os por the geese. Era uma abreviatura conveniente mas também é sugestivo do quanto não os tinha em particular conta como soldados.

Nos princípios de Maio, Dartford havia iniciado um empenhado treino nas trincheiras. Escrevia ele a 3 de Maio: Pus os geese a fazer fogo durante aqueles 10 minutos cruciais em que já há luz suficiente para se ver o parapeito mas ainda não se conseguem distinguir as cabeças e continua, tive um particular prazer em fazer com que os oficiais geese atravessassem comigo o descoberto até à linha da frente.
Ensinar as rotinas necessárias aos seus novos alunos era nitidamente uma tarefa difícil. Depois de tentar mostrar aos geese qual a rotina de um oficial, verificando as sentinelas, etc. ele é levado a comentar que Já estou cansado de explicar as coisas uma vez, outra e mais outra ao Capitão Pissarro (talvez Pissarra). Estava-se a 10 de Maio.
A 13 Maio (por curiosidade, dia das primeiras aparições de Fátima) notava, com um certo retoque de hipérbole: O primeiro Batalhão português a avançar sozinho para a frente foi o 34º, a 11 deste mês. Na primeira noite accionaram 700 Very lights e dispararam-se 500.000 SAA (munições de armas ligeiras)!
A 15, Dartford começava a sentir-se moderadamente encorajado:
Os geese parecem estar a adaptar-se às coisas razoavelmente bem, limpando as espingardas e mantendo as posições.

19 Maio (Sáb.) Às 22H00 o grupo destacado começou a trabalhar – uma patrulha de dez homens acompanhados ainda de dois cabos ingleses mais experientes. O arame não estava em muito mau estado mas encontrou-se um sítio adequado para instalar um obstáculo (apron). Os homens trabalharam rapidamente mas foi o trabalho de intérprete mais engraçado que tive até agora, sussurrado e trapalhão. Esteve tudo calmo até por volta das 00H30 quando os alemães começaram a atirar RGs (granadas) ao longo do arame, porque deviam ter visto ou ouvido movimentações. Os boches rapidamente ter-se-ão apercebido onde estávamos e algumas começaram a cair por perto. Foi tempo de sair dali mesmo antes de um bombardeamento em regra com RGs e TMs (morteiradas).
Impunha-se que a comunicação social da época desse destaque à chegada dos novos aliados. Durante as semanas seguintes a Brigada de Dartford foi visitada sucessivamente por um operador de câmara e um fotógrafo. Dartford tornou-se um colaborador entusiasta em cada uma das visitas, organizando as cenas adequadas.
21 Maio (Seg.) À tarde apareceu um operador de cinema o que provocou uma enorme agitação. Fez várias filmagens na linha da frente. Eu ajudei-o nas encenações e organizei os homens que caminhavam para a trincheira e depois a distribuição dos jantares das marmitas. Uma cena das cómicas foi conseguida com dois geese sorridentes a comer da mesma concha em simultâneo. O que eu não sabia é que alguém decidira atirar duas bombas por cima do parapeito naquela mesma altura e estou com receio que apareça numa pose não muito favorável.
24 Junho (Dom.) O Sol regressou à hora de almoço e encontrei o fotógrafo oficial da Frente Ocidental à minha espera. Queria tirar uns bons instantâneos da infantaria para os jornais. Levei-o a dar uma volta e ele tirou uma dúzia de instantâneos do meu grupo de geese. Uma é do Capitão Burn (o nome deve ter sido mal copiado dos diários e estará certamente errado - André Brun, como sugere um comentador deste poste?) e de mim que ele prometeu ver se guardava e mandar-me uma cópia.

Estes eram os interlúdios agradáveis que depressa se esqueciam quando Dartford tinha de regressar à sua, muitas vezes frustrante, tarefa. A 26 de Junho, dois dias depois da visita do fotógrafo, quando fazia o reconhecimento do sector da esquerda da sua Brigada, viu-se subitamente a andar em trincheiras muito expostas e sujeito às atenções dedicadas da artilharia alemã. Ninguém se incomodou em aumentar mais a profundidade da trincheira, escreveu ele irritadíssimo naquela noite, e depois vim a descobrir que o 2º comandante anda preocupadíssimo a construir um abrigo suplementar só para si no QG, o que considero verdadeiramente criminoso. (Com a sua irritação e não perdendo a razão para se queixar, Dartford parece ter-se esquecido que a manutenção e o aperfeiçoamento daquele mesmo sistema de trincheiras havia pertencido a unidades britânicas nos dois anos anteriores à chegada dos portugueses, há mês e meio…). E a sua narrativa continua com um episódio que lhe havia sido contado (todos sabemos que é sempre muito difícil encontrar testemunhas que tenham presenciado de facto estas histórias mais rocambolescas que se contam…) por um oficial de artilharia britânico a respeito de um raid a um batalhão português que ocorrera três semanas antes, imediatamente depois do qual o comandante do batalhão chorava copiosamente e lamentava-se que havia perdido a linha da frente e que estava desgraçado – mas não fazia mais nada, até que um oficial de morteiros britânico (porque é que me fica a impressão que, se este oficial mais enérgico fosse também português, a história perdia metade da piada?...) foi à frente verificar o que acontecera e encontrar o comandante da companhia contra a qual o raid fora montado numa cena ainda mais bizarra:
O comandante da companhia estava debaixo de uma mesa com a sua máscara de gás colocada (embora não houvesse sinais de gás). O oficial britânico correu com ele dali para fora e perguntou-lhe se havia lançado um SOS. Não. Então arrastou-o até ao sítio dos foguetes de emergência lançando um (uma meia hora atrasado). Depois de terem recuperado a linha da frente ainda foram bombardeados com gás e mostraram-se suficientemente indisciplinados para terem tido mais 40 baixas.
No conjunto, a linha de aprendizagem dos recém-chegados continuaria a evoluir de forma um pouco errática, com a disposição de Dartford a variar constantemente entre o exaspero e o optimismo. Por um lado, há referências, como a de 11 de Setembro, a um raid que se veio a revelar um fracasso completo, enquanto por outro em 1 de Outubro ele permitia-se escrever: Todos estão satisfeitos com a forma enérgica como a Brigada tem vindo a evoluir.
Contudo, com a aproximação do Natal, tornou-se evidente a desconfiança do Alto Comando britânico que os alemães pudessem ver nos portugueses colaboradores prováveis de uma espécie de cessar-fogo tácito durante a quadra, conforme acontecera em extensivos lugares da Frente (com os alemães e os próprios britânicos) no Natal de 1914. O receio reflectia-se nesta entrada escrita na véspera do Natal de 1917:
O receio de confraternizações fez com que os oficiais britânicos tivessem que ir para a linha da frente e assinalassem qualquer atitude anormal do inimigo. Como medida preventiva houve uma data de fogo de hostilização durante a noite para grande aborrecimento de todos.
O receio de confraternizações fez com que os oficiais britânicos tivessem que ir para a linha da frente e assinalassem qualquer atitude anormal do inimigo. Como medida preventiva houve uma data de fogo de hostilização durante a noite para grande aborrecimento de todos.
Era defensável e razoável a preocupação demonstrada pelo Comando britânico. A sua sensação que os alemães não tinham o Corpo Expedicionário Português entre os seus oponentes mais ferozes na Frente Ocidental veio a ser amplamente justificada alguns meses depois (Abril de 1918) quando o sector mantido pelos portugueses foi escolhido como o alvo principal de uma grande ofensiva inimiga (a Batalha de La Lys).
Assim termina o pequeno capítulo dedicado a parte das memórias do Capitão Dartford. Creio tratar-se de uma contribuição parcelar mas justa para a análise da participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial, desprovida daquelas justificações diplomáticas costumeiras. Na sua objectividade, o texto também me parece também transparente quanto aos preconceitos que muitos britânicos terão a nosso respeito - sendo mais incompreensível os manifestados pelo autor do próprio livro que foi escrito 75 anos depois da redacção dos diários...
Assim termina o pequeno capítulo dedicado a parte das memórias do Capitão Dartford. Creio tratar-se de uma contribuição parcelar mas justa para a análise da participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial, desprovida daquelas justificações diplomáticas costumeiras. Na sua objectividade, o texto também me parece também transparente quanto aos preconceitos que muitos britânicos terão a nosso respeito - sendo mais incompreensível os manifestados pelo autor do próprio livro que foi escrito 75 anos depois da redacção dos diários...
O capitão Burn pode bem ser André Brun, oficial do exército, humorista (A série Praxedes, por exemplo), dramaturgo (autor de A Vizinha do Lado e de A Maluquinha de Arroios) e vizinho de prédio dos Lopes Ribeiros. Em A Malta das Trincheiras contou em modo divertido muitas histórias dessa guerra.
ResponderEliminarAtentamente, nuno ivo
É bem possível que o seja. Muito obrigado pela sua contribuição. São contribuições como a sua que melhoram a qualidade do que está publicado e podem atenuar a reputação do conteúdo das redes sociais.
ResponderEliminarCumprimentos