Mesmo quem estudou e sabe dar a devida importância à componente estratégica da Análise Histórica, esquece-se que antes do Século XX e das duas Guerras Mundiais, já as duas grandes potências periféricas da Europa (a França e o Reino Unido) se haviam coligado contra uma outra potência continental com pretensões hegemónicas que não a Alemanha. Aconteceu na década de 1850 contra a Rússia e o resultado foi a Guerra da Crimeia (1853-1856) que terminou com a derrota russa e a desistência desta a ambições expansionistas na Europa oriental… até 1945!
Mas o que me interessa aqui desenvolver é a forma como se estabeleceu a cooperação militar entre os dois exércitos que haviam sido os antagonistas da Batalha de Waterloo (1815) e o inesgotável tópico que consiste na forma geralmente sobranceira como os franceses viam (e vêem…) os seus aliados que apenas perde em inesgotabilidade para a forma desdenhosa como os britânicos lhes retribuíam – e retribuem… Um oficial francês deixou-nos as suas impressões – típicas – numa carta que enviou para casa:
Os soldados britânicos mostram-se entusiasmados, é gente forte e bem constituída. É de admirar os seus uniformes elegantes, todos novos, o seu excelente comportamento, a precisão e o rigor das suas manobras de ordem unida e a beleza dos seus cavalos, mas a sua maior fraqueza é que estão demasiadamente habituados ao conforto; vai ser difícil dar resposta aos seus inúmeros pedidos quando estivermos mesmo em campanha.
Neste caso, os militares franceses falavam de cima para baixo e com toda a propriedade dos seus homólogos britânicos: as Academias militares fundadas em França desde o período napoleónico (Saint-Cyr) formavam novas classes de oficiais profissionais que estavam tecnicamente mais bem preparados, eram tacticamente melhores e socialmente mais próximos dos seus homens do que os seus homólogos de origem aristocrática do outro lado do Canal da Mancha, onde as patentes de oficial ainda eram adquiridas pelos mais abonados. A adicionar, o exército francês contava com mais de duas décadas de uma contínua evolução táctica, envolvido como estava desde 1830 na Guerra da Argélia.
Um soldado francês de uma das unidades de elite formadas em consequência dessa Guerra, o 1º Batalhão de Zuavos (gravura acima – a designação Zuavos transformou-se no sinónimo de tropa de elite na segunda metade do Século XIX, tal como aconteceu algo parecido com a designação Comandos na segunda metade do Século XX), deixou-nos também a sua perspectiva na comparação entre os dois exércitos:
Os recrutadores britânicos parecem ter ido remexer os fundos da sua sociedade porque só as classes inferiores é que terão sido mais sensíveis às suas ofertas de dinheiro. Se os filhos dos remediados também fossem incorporados, os castigos corporais infligidos aos soldados britânicos pelos seus oficiais já há muito teriam sido proibidos pelo código penal militar. Só a visão da aplicação desses castigos nos revolta logo, lembrando-nos como a Revolução de 1789 aboliu o castigo das chicotadas no exército conjuntamente com o estabelecimento do recrutamento universal… O exército francês é composto por uma classe especial de cidadãos submetidos às leis militares, que são severas mas aplicadas com equidade a todas as patentes. No Reino Unido o soldado não passa de um servo – uma propriedade do Estado – que é dirigido por dois métodos contraditórios entre si. O primeiro é o do pau e o segundo é o do bem-estar material. Os britânicos têm um instinto apurado para o conforto: viver bem, numa tenda confortável, com um belo naco de carne grelhada para almoço, acompanhado de vinho tinto e um bom abastecimento de rum – são estes os objectivos do tarata inglês e são essas as pré-condições essenciais para o seu valoroso comportamento em combate… Mas se os seus abastecimentos se atrasarem, se ele tiver que dormir na lama, ir à procura da lenha para se aquecer ou avançar sem o seu beef e o seu grog, então as fileiras britânicas desmoralizam-se rápida e genericamente.
Este poste já vai comprido mas, mesmo assim, é minúsculo comparado com a biblioteca que existirá analisando as vantagens sociais, políticas e outras entre a aplicação – ou não – do regime do serviço militar obrigatório e a existência de um exército de conscritos versus a de um exército de voluntários. Uma coisa é certa: trata-se de duas realidades distintas e há que sabê-las distinguir porque há quem ande para aí proferindo declarações em nome das Forças Armadas portuguesas como se elas fossem algo que já não são depois da sua profissionalização.
Mas o que me interessa aqui desenvolver é a forma como se estabeleceu a cooperação militar entre os dois exércitos que haviam sido os antagonistas da Batalha de Waterloo (1815) e o inesgotável tópico que consiste na forma geralmente sobranceira como os franceses viam (e vêem…) os seus aliados que apenas perde em inesgotabilidade para a forma desdenhosa como os britânicos lhes retribuíam – e retribuem… Um oficial francês deixou-nos as suas impressões – típicas – numa carta que enviou para casa:
Os soldados britânicos mostram-se entusiasmados, é gente forte e bem constituída. É de admirar os seus uniformes elegantes, todos novos, o seu excelente comportamento, a precisão e o rigor das suas manobras de ordem unida e a beleza dos seus cavalos, mas a sua maior fraqueza é que estão demasiadamente habituados ao conforto; vai ser difícil dar resposta aos seus inúmeros pedidos quando estivermos mesmo em campanha.
Neste caso, os militares franceses falavam de cima para baixo e com toda a propriedade dos seus homólogos britânicos: as Academias militares fundadas em França desde o período napoleónico (Saint-Cyr) formavam novas classes de oficiais profissionais que estavam tecnicamente mais bem preparados, eram tacticamente melhores e socialmente mais próximos dos seus homens do que os seus homólogos de origem aristocrática do outro lado do Canal da Mancha, onde as patentes de oficial ainda eram adquiridas pelos mais abonados. A adicionar, o exército francês contava com mais de duas décadas de uma contínua evolução táctica, envolvido como estava desde 1830 na Guerra da Argélia.
Um soldado francês de uma das unidades de elite formadas em consequência dessa Guerra, o 1º Batalhão de Zuavos (gravura acima – a designação Zuavos transformou-se no sinónimo de tropa de elite na segunda metade do Século XIX, tal como aconteceu algo parecido com a designação Comandos na segunda metade do Século XX), deixou-nos também a sua perspectiva na comparação entre os dois exércitos:
Os recrutadores britânicos parecem ter ido remexer os fundos da sua sociedade porque só as classes inferiores é que terão sido mais sensíveis às suas ofertas de dinheiro. Se os filhos dos remediados também fossem incorporados, os castigos corporais infligidos aos soldados britânicos pelos seus oficiais já há muito teriam sido proibidos pelo código penal militar. Só a visão da aplicação desses castigos nos revolta logo, lembrando-nos como a Revolução de 1789 aboliu o castigo das chicotadas no exército conjuntamente com o estabelecimento do recrutamento universal… O exército francês é composto por uma classe especial de cidadãos submetidos às leis militares, que são severas mas aplicadas com equidade a todas as patentes. No Reino Unido o soldado não passa de um servo – uma propriedade do Estado – que é dirigido por dois métodos contraditórios entre si. O primeiro é o do pau e o segundo é o do bem-estar material. Os britânicos têm um instinto apurado para o conforto: viver bem, numa tenda confortável, com um belo naco de carne grelhada para almoço, acompanhado de vinho tinto e um bom abastecimento de rum – são estes os objectivos do tarata inglês e são essas as pré-condições essenciais para o seu valoroso comportamento em combate… Mas se os seus abastecimentos se atrasarem, se ele tiver que dormir na lama, ir à procura da lenha para se aquecer ou avançar sem o seu beef e o seu grog, então as fileiras britânicas desmoralizam-se rápida e genericamente.
Este poste já vai comprido mas, mesmo assim, é minúsculo comparado com a biblioteca que existirá analisando as vantagens sociais, políticas e outras entre a aplicação – ou não – do regime do serviço militar obrigatório e a existência de um exército de conscritos versus a de um exército de voluntários. Uma coisa é certa: trata-se de duas realidades distintas e há que sabê-las distinguir porque há quem ande para aí proferindo declarações em nome das Forças Armadas portuguesas como se elas fossem algo que já não são depois da sua profissionalização.
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